quarta-feira, dezembro 20, 2006

terça-feira, novembro 28, 2006

Outras realidades

Estou às voltas com Calvino, o ítalo.
Andei longe do blog, por outras atividades mais prementes. Outras realidades que exigiam minha presença, não desenvolvi, ainda, o dom da ubiqüidade.

No entanto, cheguei a uma conclusão importante, por mera observação empírica. Outras realidades têm direito à existência, e existem, de fato. Só que por serem outras, existem de maneira diferente da nossa. Uma delas é a realidade das criações artísticas. Um mundo onde as obras se sucedem, como as cidades, os mares e os acidentes geográficos em nosso planeta. Você pode andar por uma praia, de uma ilha, e encontrar Robinson tentanto arrastar uma enorme canoa para o mar. Avance mais um pouco e verá, ao longe, um cavaleiro bem magro, num cavalo derreado, seguidos por um escudeiro roliço. Cuidado com as grandes planícies, pois você pode ser atropelado por hordas de guerreiros de qualquer época, pois esse é um cenário recorrente de todos os períodos e universos. Imagine esse planeta, esse universo das obras literárias. Assim como o nosso, também infinito. Sabemos que jamais o percorreremos por inteiro.
O universo da literatura está em nossas mentes, coletivamente, comunica-se, interage. Numa concepção borgeana, existem lugares das obras escritas, das obras em andamento e do vir a ser. É uma realidade, diferente dessa física, mas que tem existência. Um mundo que se poderia chamar de platônico, por conceitual, mas não me agrada a idéia platônica de cópias imperfeitas. Criações imperfeitas, por incompletas, talvez. Assim como a nossa, essa outra realidade vive em mutação constante, mesmo quando se trata de obras supostamente acabadas. Um ponto final
pode facilmente se transformar em dois pontos, travessão, ou reticências. E o mundo se transforma novamente.

sexta-feira, agosto 25, 2006

A pequena leitora faz poesia sem perceber

A lua não está minguante,
Não está crescente,

Está sorridente! :-)

Carlos, Murilo e Pedro

Se fossem meninos, amigos, e se encontrassem num pasto de uma fazenda qualquer de Minas Gerais:
- Carlos estaria lendo Robinson Crusoé, sentado sob uma mangueira.
- Murilo estaria arremessando pedras para o céu, na esperança de que se incendiassem e virassem novas estrelas.
- Pedro estaria observando-os atentamente, fixando o momento em sua memória, mas sem saber disso, naturalmente.

quarta-feira, agosto 23, 2006

A suprema interrupção

Em O último leitor, Ricardo Piglia fala do horror de Kafka às interrupções de seu trabalho de escritor. Pedro Nava cometeu a suprema interrupção ao suicidar-se ao final do primeiro capítulo daquele que seria seu último volume de memórias, Cera das almas. A resenha do livro incompleto de Nava saiu no Rascunho de agosto, que também traz um especial sobre Guimarães Rosa e os 70 anos de Angústia.

O link para a resenha sobre o Nava é:
http://tinyurl.com/elwtj

Mas vale dar uma boa lida no resto do jornal.
 

quinta-feira, agosto 17, 2006

O leitor escreve

O pescador
Júlio não gosta de futebol. Seu pai gosta, muito. Seu pai gostaria que ele gostasse de futebol, gostaria muito. No aniversário de dez anos, o pai deu ao filho um par de chuteiras e uma bola tamanho oficial. Ambas da marca Nike, na cor azul metálico. Júlio gosta do pai, gosta muito, de verdade. Assim, gostou muito do presente também, mesmo não gostando. O pai ficou feliz que o filho tenha gostado tanto assim dos presentes. (Mesmo sabendo que o menino não tinha gostado tanto assim).
Júlio mora na rua Buarque de Macedo, no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro. A rua começa na Praia do Flamengo e termina na Rua do Catete. Tem sempre muitos carros estacionados dos dois lados, passagem para um carro de cada vez. O prédio em que Júlio mora, não tem play. "Vai filho, chama seus amigos e vai jogar bola embaixo". Júlio achou muito estranho o pai dizer isso, pois se não pode sair na rua sozinho, pois se tem muito mendigo e gente ruim que faz mal para as crianças. Mas, Júlio gosta muito do pai e achou por bem obedecer. Ligou para o amigo da escola, que morava em outro prédio e perguntou se ele queria jogar bola na calçada, que ele tinha ganhado uma bola nova e o pai tinha dito para ir jogar embaixo e ele tinha ganhado também as chuteiras. "Que maneiro!", disse o amigo, que realmente gostava de futebol, mas sabia que Júlio não sabia jogar e que também não podiam descer para a rua para brincar. "Minha mãe disse que a rua não é lugar para brincar", disse o amigo. Então Júlio calçou as chuteiras, pegou a bola e desceu.
O porteiro elogiou as chuteiras e a bola brilhantes, e apertou o botão para destrancar o portão eletrônico. Júlio ficou em na calçada estreita, em frente à grade do prédio. A calçada era esburacada e com sujeira de cachorro. Fez a bola quicar no chão, chutou de leve, passando o por cima. Ficou chutando de um lado para outro da calçada, em frente ao prédio. Quando vinha alguém, segurava a bola com a mão. Um cachorro fez xixi na árvore em frente ao prédio, a bola escapou dos pés de Júlio e passou em cima do xixi. Ele pegou a bola e parou na frente do portão, o porteiro abriu e Júlio lavou a bola na torneira da garagem. Ficou chutando a bola dentro da garagem do prédio, mas o zelador disse que não podia jogar bola ali.
Ele foi para o elevador e voltou para casa. O pai disse, “?! Vai brincar, cara! Aproveita!”. Júlio não queria voltar para a rua sozinho, não queria jogar bola. Mas, pegou a bola de novo e desceu. Saiu pela calçada e foi andando em direção ao Aterro. Atravessou a rua passou pela passarela sob as pistas dos carros. Foi chutando a bola devagar, até uma quadra de basquete. Ficou olhando os caras jogando basquete. Não gostava de basquete, menos ainda do que de futebol, a bola era muito grande e pesada. Foi até aquele lago retangular, sempre seco, tinham falado que era um lago para miniatura de barcos a motor ou a vela. Mas o lago estava sempre seco, por causa dos mosquitos da dengue. Bem que se estivesse com água ele ia gostar de brincar com barquinhos de controle remoto, mas era caro, o pai nunca ia comprar para ele. Ele entrou no lago seco e começou a chutar a bola de um lado para outro. Tinham pintado um gol de cada lado do lago e Júlio marcou muitos gols, dos dois lados.
Enquanto chutava a bola nova, não reparou num grupo de meninos de rua que pularam a cerca do lago e ficaram olhando ele jogar. ", vamu jogá?" Júlio sacudiu os ombros, os meninos entraram no lago seco por causa da dengue e fizeram dois times. Os meninos estavam descalços, mas sabiam jogar futebol. Eles gostavam muito de futebol. Acharam a bola linda. Júlio não conseguia mais tocar na bola, ele não sabia jogar futebol, acabou ficando de fora. Sentou-se na beira do lago, ficou olhando o jogo e vendo os bondinhos de Pão de Açúcar se cruzando entre os dois morros, longe, na Urca. Uma vez ele foi pescar na Urca com o pai, ele gostou de pescar com o pai. Ele gostaria de ganhar uma vara de pescar, daquelas com molinete, e ir pescar com o pai. "Me empresta a chuteira?" Um menino maior do que ele estava na sua frente. Júlio ficou com medo. Tirou a chuteira e emprestou. As meias também. Obviamente, as chuteiras ficaram apertadas no moleque, mas ele as enfiou assim mesmo. Os meninos ficaram jogando futebol, a bola estava suja e arranhada, as chuteiras no do outro também. Mas estavam felizes, uma alegria fácil de um jogo que os tirava momentaneamente das ruas e os colocava dentro de um campo, com regras conhecidas e que aqueles meninos desregrados sabiam obedecer. Respeitavam as faltas, as laterais, os tiros de metas. Xingavam-se, batiam-se, mas jogavam bola e marcavam gols. Júlio queria ir embora, mas não tinha coragem de interromper o jogo para pegar a bola e as chuteiras de volta. Até que a bola veio em sua direção e ele a pegou. "Joga a bola , mano!" "Tenho que ir embora" "E daí, joga a bola !" "Meminha chuteira, tenho que ir embora" "Dá a bola , moleque! Quer morrer?!” De algum lugar, surgiu um revólver na mão de um menino. Júlio se assustou, pulou a cerca, caiu do outro lado e saiu correndo. Foi correndo até em casa. Entrou ofegante. “Que foi menino?! Cadê a bola?!"
"Pai, vamos pescar?”
Foram.

Rio , 15 de agosto de 2006

sexta-feira, julho 21, 2006

Os prêmios, Julio Cortázar

Essa resenha marca minha estréia no jornal literário Rascunho. Visite o jornal para ler o texto e deixe aqui seu comentário.
Abraços,
Daniel

Em busca da maternidade perdida

Memórias Líquidas, de Hilda Lucas. Editora de Cultura, 232 páginas. R$ 34,90
Resenha publicada no Globo, em 8/7/2006

 “... Não existe sequer uma palavra para nomear quem perde um filho. Viúvos são os que perdem os companheiros, órfãos os que perdem os pais... Mas que nome tem quem perde um filho?”

 Hilda Lucas escolheu um tema difícil para publicar o seu primeiro romance. Há quem diga que não existe dor maior do que a perda de um filho. Maior em todos os sentidos, em intensidade e em duração. Uma dor tão terrível que se torna inominável. E algo inominável é muito difícil de ser tratado pela literatura.
O livro conta a história dos membros de uma família e suas diferentes maneiras de lidar com a morte da filha mais velha, quando a menina tinha oito anos. Dez anos depois, mãe, irmã, pai, empregada e amiga da mãe têm suas reações e histórias narradas em capítulos intercalados, dedicados a cada um deles. A voz de claro timbre feminino da narrativa retrata os personagens de forma onisciente. A intenção é mostrar o ponto de vista de cada um sobre a criança morta e sobre os demais, sob a supervisão geral da narradora. Os olhares, no entanto, demoram-se mais sobre a mãe, centro de tensão da rede de relações.
No esquema de Hilda Lucas, filha, ex-marido e empregada procuram levar suas vidas adiante, apesar da estagnação no sofrimento da mãe. Em oposição, uma amiga, que revela-se inimiga, procura manter a mãe em um estado permanente de dor. O suspense da trama é se a mãe conseguirá ou não libertar-se da má influência e superar o trauma, redescobrindo a vida e a filha viva.
A filha mais nova, agora adolescente, é a única a quem a autora concede voz própria, em longos monólogos/diálogos com a irmã morta. Hilda procura mostrar como cada pessoa lida com a perda. No caso da irmã, segundo suas próprias palavras, "comecei a inventar você quando eu vi que tava te esquecendo...". A partir daí, Gabi, a caçula, tem longas conversas com Clara, a irmã mais velha imaginária, que vai crescendo com ela, vivendo juntas a passagem complicada pela adolescência. Além disso, os diálogos com a irmã ausente compensam a distância imposta pela mãe, que não se permite aproximar-se da filha viva. Para Gabi, a gangorra equilibra-se no convívio com o pai, que conseguiu superar a morte da primeira filha. Do mesmo lado do pai, está Amália, a empregada, espécie de escudeira, que vai amarrando as pontas soltas do lar desfeito para que a vida não se desmanche de vez. O conflito é estabelecido pela presença de Beth, que alimenta a tristeza de Ana, a mãe, para nutrir-se de sua dor, íncubo maligno que a narradora revela sem disfarces ao leitor.
O universo de emoções e tensões a que somos expostos no livro de Hilda Lucas, apesar do tema tortuoso, é muito organizado e planejado. A narrativa guarda algumas surpresas que a livram da previsibilidade, no entanto, os personagens e a própria teia de relacionamentos tem algo de esquemático. O conflitoAna x Beth”, o fio de suspense que mantém o leitor  preso à leitura, na verdade, é um conflito interno de Ana de superação da morte da filha e de auto-superação. Nesse aspecto, a personagem Beth poderia ser dispensada se o foco de tensão fosse desviado para o conflito interno de Ana e a resolução de seu relacionamento com a filha viva. O romance talvez ganhasse em profundidade se trabalhasse nesse nível interno ao invés de lidar com essa superação de maneira quase dicotômica, bem x mal, no conflito organizado entre vida e morte, Ana x Beth.
Por outro lado, apesar desta organização que impede o livre fluxo da vida interior dos personagens para além do planejamento narrativo, percebemos na narradora uma extrema afetividade e delicadeza no tratar de seus personagens. O tema da morte de um filho é importante para além dos limites literários e é impossível não se deixar tocar por uma história assim. Quem passa por isso na vida, dificilmente terá o mal encarnado em uma pessoa nociva de carne e osso, que se pode afastar e seguir em diante. A luta verdadeira é pela superação da dor interna, da sensação de fim de tudo, de perda de sentido. Mas, se alguém morre, outros estão vivos ao redor. A verdadeira missão de Ana é redescobrir a filha viva e recuperar os dez anos de convívio esmagados pela dor extrema.
Hilda Lucas, bahiana, radicada em São Paulo, com uma longa passagem pelo Rio, é advogada, tem 52 anos e, escolheu uma das mais terríveis perdas para renascer pela via da literatura, pois, Memórias líquidas, segundo a própria escritora, é uma retomada. Em entrevista no site www.bmsr.com.br, ela diz: “Um ano após enfrentar uma separação, lancei Memórias Líquidas com meu nome de solteira. Foi como resgatar minha certidão de nascimento, meu código genético, minha alma”. Portanto, o livro, além de falar do resgate familiar da lembrança de uma criança morta, serviu de processo de reencontro da autora consigo mesma, com suas origens perdidas. A literatura cumpriu seu papel.

 

quinta-feira, julho 13, 2006

As mil imagens da palavra

Quantas imagens cabem na palavra: amor?
Quantas imagens cabem na palavra: luz?
Quantas imagens cabem na palavra: vida?

Quantas palavras uma imagem impede de serem ditas?

domingo, julho 02, 2006

Voltando a ser resenhista

No capítulo das retomadas, a principal foi a da atividade de resenhista. Primeiro com este blog, pelo simples desejo de reencontrar a literatura. Depois, procurando antigos contatos, cheguei ao Globo. Minha primeira resenha publicada em papel pode ser vista aqui: http://tinyurl.com/m36rf.

Escrever sobre livros e literatura gera um sentimento de plenitude e realização que nenhuma outra atividade provoca.

terça-feira, maio 30, 2006

A história de Despereaux, Kate DiCamillo

A história de Despereaux, que conta o que aconteceu com um camundongo uma princesa, um pouco de sopa e um carretel de linha.
Kate DiCamillo, com ilustrações de ilustrações de Timothy Basil Ering, tradução de Luzia Aparecida dos Santos, revisada por Monica Stahel. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2005.
Título original: The Tale of Despereaux. ISBN: 85-336-2162-0


Esse é um livro que merece um lugarzinho especial na estante. Os Pequenos Leitores estão alfabetizados e começam a ter mais fôlego. O Pequeno Leitor tem demonstrando uma grande facilidade nesse terreno. Com dois meses de alfabetização, mostra-se ávido por letras, nada escapa ao seu ímpeto leitor. A história de Despereaux chegou à família como um presente para a Pequena Leitora. O livro está sendo lido aos pouquinhos, em leituras orais noturnas. No entanto, ontem ele demonstrou sua força.
Depois que a Pequena Leitora adormeceu, o que acontece bem rapidamente, em geral, basta uma página, o Pequeno Leitor quis continuar. Li mais três capítulos e disse que estava com sono. Mas ele quis continuar. Disse então que ele lesse por sua conta, pois eu ia dormir. E ele quis continuar. Não se fez de rogado e atracou-se com o livro. Alternou leitura em voz alta, murmurada e para si. Não queria largar a história do camundongo Despereaux. A leitura trôpega, sílaba a sílaba, palavras difíceis, quebras de palavras em quebras de linha. Nada o impediu. Quis ir para a minha cama, quis ir para a mesa onde A Leitora estudava, voltou para a minha cama. Os olhos ficaram vermelhos e lacrimejantes pelo esforço. Mas não se deteve. Foi preciso um ultimato, pois o dia seguinte começava cedo e era preciso dormir.

Acontece que o livrinho é sensacional. Fazia tempo que não encontrava um texto literário com tamanha pureza e profundidade. Uma profundidade singela, se é que isso é possível, e delicada. A autora está contando uma história e faz questão de deixar isso claro. Fala ao leitor o tempo todo. Um leitor que precisa ser instruído, mas que é capaz de aprender:
"(...)Você sabe o que significa empático?
Pois vou lhe dizer. Ao ser levada para o calabouço, com uma faca enorme apontada para as costas, tentando manter a coragem, ainda assim a princesafoi capaz de pensar na pessoa que está segurando a faca.
Ela pensava: "Pobre mig, ela quer tanto ser princesa e acha que assim vai conseguir. Pobre Mig. Como será desejar alguma coisa tão desesperadamente?"
Isso, leitor, é empatia.
E agora você tem um pequeno mapa do coração da princesa (ódio, dor, gentileza, empatia), o coração que ela carregava ao descer a escada dourada, ao atravessar a cozinha e, finalmente, quando o céu lá fora começava a clarear, ao chegar à escuridão do calabouço com o rato e a criada"
A jovem princesa chama-se Ervilha. A jovem e gorducha criada chama-se Migalha Sementeira. Existe um camundongo heróico, Despereaux, e um rato maldoso, Chiaroscuro, ou Roscuro. Além da delicadeza do estilo, até mesmo ao narrar mortes, acidentes e assassinatos, o que me agradou bastante foi o desenho dos personagens. Digo desenhos de propósito, pois ela revela as ambivalências dos sentimentos, os "mapas dos corações" com muita clareza. As ações do vilão, dessa forma, podem ser perdoadas, ou antes, compreendidas, pois a autora mostra que sua motivação é inocente, ainda que suas ações sejam condenáveis.
Lembro dos estudos de teoria literária, em que havia uma classificação entre personagens planos e redondos. Os planos são aqueles personagens contínuos, que começam e terminam uma história com o mesmo caráter, que não trazem surpresas. Os redondos são personagens de várias faces, que se mostram conforme a luz incide sobre eles. Capazes de se transformar. O mergulho na luz e na escuridão dos personagens de Despereaux mostram o seu percurso interno de aprendizagem, de todos eles. O ambiente principal da história, um castelo dividido entre as luzes dos salões, a penumbra da cozinha e a escuridão do calabouço, é o cenário perfeito e didático para a representação dos movimentos dos personagens. A simetria entre Despereaux e Roscuro é interessante, pois, tanto a descida ao calabouço do camundongo, quanto a ascensão aos salões iluminados do rato acabam por aproximá-los e os antagonismos são desfeitos. Esse não é um final óbvio em um livro infanto-juvenil. Mas, não se trata de um livro óbvio. A felicidade do final não é do tipo "para sempre", mas sim uma situação de retorno a um equilíbrio não garantido.
Um último comentário. Despereaux salva-se da morte no calabouço por ter uma história para contar. E, como lhe diz o carcereiro, "Histórias são luz. A luz é preciosa num mundo tão escuro. Comece do começo, conte uma história para Gregório. Faça alguma luz."
Por que será que gostamos tanto de histórias?

domingo, maio 28, 2006

Registro de leituras

E o pulso ainda pulsa...

  • A ocasião, Juan Jose Saer, li faz uns dois ou três meses. Ficou em cima da mesa, está me chamando, vou acabar comentando.

quinta-feira, abril 06, 2006

Afinal de contas...

Quem se interessa por literatura?

(e muito o menos pelo que se publica aqui ;-)

Evoé!

Outro do Paulo Henriques Britto, em Macau

"A quem possa interessar", Paulo Henriques Britto, em Macau

 

“A quem possa interessar”? Por
não se chega jamais a parte alguma.

O impulso é de outra espécie: uma pressão
quem vem de dentro, e incomoda. No fundo

é isso que importa. O resto é o resto.
E no entanto nesse resto está o múnus

público da coisa – vá o termo -
o quetrabalho, o que impõe um custo

sem benefício claro à vista, e às vezes
acaba interessando até quem nunca

se imaginou como destinatário
de uma – digamos assim – “carta ao mundo”,

que é o que a coisa acaba sendo e tendo sido
desde o começo. Como sempre. Como tudo.

quinta-feira, março 30, 2006

Um pulo no Afeganistão

O caçador de pipas

Khaled Hosseini

Tradução de Maria Helena Rouanet

Editora Nova Fronteira

 

Apenas uma nota rápida, pois tenho que trabalhar.

Acho surpreendente este livro estar tanto tempo na lista dos mais vendidos. O livro é bom, aliás, é muito bom. Mas a história é triste e dura. Aliás, como escrever sobre um país como o Afeganistão de forma leve?

 

Fica a pergunta: o que vem atraindo tantos leitores para ele?

quarta-feira, março 22, 2006

na verdade, uma outra forma de vida

BIODIVERSIDADE

Paulo Henriques Britto, Macau, ed. Companhia das Letras

maneiras mais fáceis de se expor ao ridículo,

que não requerem prática, oficina, suor.

Maneiras mais simpáticas de pagar mico

e dizer olha eu aqui, sou único, me amem por favor.

Porémquem se preste a esse papel esdrúxulo,

comoquem não se vexe de ler e decifrar

essas palavras bestas estrebuchando inúteis,

cágados com as quatro patas viradas pro ar.

Então essa fala esquisita, aparentemente anárquica,

de repente é mais do que isso, é uma voz, talvez,

do outro lado da linha formigando de estática,

dizendo algo mais que testando, testando, um dois três,

câmbio? Quem sabe esses cascos invertidos,

incapazes de reassumir a posição natural,

não são na verdade uma outra forma de vida,

tipo um ramo alternativo do reino animal

quarta-feira, janeiro 18, 2006

O jogo da amarelinha - uma experiência radical de leitura (Uma despedida?)

Algumas coisas tem data e momento certo para acontecer. Minha primeira leitura de O jogo da amarelinha, por exemplo. Eu tinha uns 18 ou 19 anos. Havia passado no vestibular, para o segundo semestre. Tinha livre alguns meses, que foram dedicados a três atividades decisivas em minha vida: um curso de datilografia, conquistar aquela que viria a ser minha esposa e ler O jogo da amarelinha.

Para me manter dentro do tema do blog, falo apenas da última. Eu tinha muito tempo livre e um livro pesado para me acompanhar. Iniciei a leitura pela ordem sugerida do autor, indo e voltando de um lado para outro, intercalando capítulos, mergulhando em um universo cada vez mais denso de personagens estranhos, exóticos, incrivelmente inteligentes e cultos. As discussões do Clube da Serpente deixavam-me perplexo. Falavam de coisas, realidades, altamente intelectuais. Uma literatura muito diferente daquela feita pelos escritores brasileiros da década de 80, por exemplo. Cortázar diz que o livro antecedeu seu período de maior engajamento político, o que talvez explique o tom existencial do romance, profundamente filosófico. Eu fiquei encantado pelo desfile cultural de artes plásticas, filosofia, jazz, música clássica. Como tudo aquilo criava o cenário parisiense daquele bando de exilados. Como as citações e análises não apareciam gratuitamente, mas dentro do contexto de discussões e questionamentos altamente pertinentes para a vida daquelas pessoas e, principalmente, para a vida de Horácio Oliveira, o protagonista.

Mesmo o ir e vir entre os capítulos tinha uma razão de ser, não se tratava apenas de uma brincadeira estética, um experimento narrativo. Era algo que funcionava. Criava um caminho intrincado de leitura, que ia me arrastando para dentro do livro.

Eu morava em uma casa em meio a um grande quintal. Ao lado da minha mesa de estudos e trabalho, havia uma janela que dava para um verde bambuzal. Pois, em um determinado momento da leitura, fechei as duas janelas do meu quarto. Fechei a porta. Deixei apenas uma pequena luminária apontada para as páginas do livro. Tratava-se de uma relação com a leitura que eu ainda não havia experimentado. Para não me confundir, ia marcando com um X os capítulos lidos, como as pedrinhas deixadas pelo caminho por João e Maria, mas ainda assim, eu me perdi naquelas páginas.

Nascido em Porto Alegre, o chimarrão me era familiar e eu passei a acompanhar a leitura com uma cuia de mate fervente ao meu lado, que sorvia junto com o argentino Oliveira. Eu, em minha adolescência terminal, me identificava com os becos sem saída para onde o existencialismo de Oliveira o arrastava. Os sapatos molhados, o opressivo ambiente europeu, a chuva e a progressiva alienação.

O livro não me fez mais feliz. A imagem que tinha na época era a de uma rachadura que havia atravessado meu cérebro de fora a fora. Após a leitura, algo havia se deslocado, uma perda de foco da realidade. Uma dificuldade de entender e justificar as coisas. Um ceticismo e uma amargura acentuados, que me acompanham até hoje. Não, culpo o livro pela meu cansaço ou depressão, digamos que ele tenha agravado esses traços. As leituras dessa época eram similares. Kafka, Sartre, Poe, Dostoievski...

Passados mais de vinte anos, tentei retomar a leitura de Rayuela. Não deu. Não sou mais aquele leitor e não tenho mais vontade de percorrer novamente as crises existenciais do egoísta Oliveira. Hoje, minha vida tem sentido. Pessoas dependem de mim, sou importante para elas e nãolugar para o tipo de questionamento existencial de vinte anos atrás.

A leitura ficou gravada em minha alma, com certeza. Hoje me dou conta que foi digerida e processada, cumpriu seu papel. Talvez um dia, quem sabe...

Tenho desafios de leitura importantes na minha mesa de cabeceira, Ulisses, por exemplo. Não sei se a vida dará espaço para um novo mergulho como aquele. A mente e o corpo cansados, o pouco tempo que sobra dedicado aos filhos ou ao sono. A literatura restrita a anotações jogadas num blog e alguma nostalgia.