quarta-feira, julho 02, 2008

O inusitado

Talvez uma das características que mais me causem deleite na leitura de Cesar Aira é a sua capacidade de surpreender com o inusitado. Estamos sempre beirando o limite do verossímil, e, ocasionalmente, ele trata de romper esse limite sem fazer cerimônia; outras, apenas sugere e esbarra.
"Lu Hsin, sentado a la cabecera de la mesa, ante el silencio absorto de los invitados, se llevó a los labios una tacita de té... azul. Tomó un sorbo de té azul, respiró, y tomó otro. Terminó la tacita de un sorbo más, y volvió a llenarla com el té azul de una tetera blanca de porcelana traslucida, llena hasta la mitad. Cada uno de los invitados, cinco graves señores mayores, estava sentado frente a una taciyta idéntica a la del anfitrión, llenas asimismo de té azul. Habían obsrvado atentamente a Lu Hsin, aun sin parecer que lo hacían. Como si salieran de un sueño, o dentro de é adquirieran movimiento, alzaro todos a un tiempo la mano derecha, tomaron sus tacitas, y se las llevaron a los labios. Un sorbo, en el silencio perfecto: cinco sorbos. Lo degustaron, pensativos. Reinaba la impresión de que a ellos no se los podrían engañar, no digamos con té chasco, per ni siquiera con um buen colorante puesto en la infusión. Y a pesar de esa certeza, estaban en trance de comprobar una verdad inverosímil. Vaciaron las tacitas confirmando um juicio. Las devolvieron a la mesa con ruiditos secos, espaciados: la música secundaria del té.
Es té, indudablemente — dijo uno de ellos. Los otros asintieron.
Se sucedieron entonces las congratulaciones a Lu, teñidas de disculpa, como se dijeran que había sido un trámite burocrático más.
Los cinco ancianos, reconocidos expertos en arte, habían sido jurados en un concurso de pintura com té, de los que son tradicionales en nuestro país. Con las distintas variedades de té, aplicadas con pincel sobre los papeles clásicos de los acuarelistas, se obtienen exquisitas coloraciones pardo gresáceas, doradas, amarillas, ocres en todas sus tonalidades, anaranjadas, y hasta un tenue rojo. Pero, nunca azul; de ese color no había antecedentes em los cuantiosos anales de la pintura com té. Todos los colores de un bosque en otoño, pero no el cielo que se alza encima de las copas de los árboles. Todos los colores de un crepúsculo, pero no el que está antes de las transformaciones. Sin embargo, en este concurso se haía presentado una obra íntegramente pintada en azul, en lo más  diversos matices del azul, desde el profundo y opaco en el que viven los pulpos, hasta el aéreo y lavado com blanco, en el que flotan nas nubecillas del mediodía. Las obras se juzgabán únicamente por sus valores pictóricos; hacerlo de otro modo habría segnificado rebararse a un nivel artesanal, o de mera curiosidad o hobby. El cuadro azul había superado a los demás presentados, por su inspiración y su destreza técnica; era el mejor, pero ¿era té? Su autor, que no era otro que Lu Hsin, había debido invitar a los jurados a probarlo en su casa. Ahora, el final requisito había sido satisfecho. Bebieron su té, y todos en paz."
Una novela china, César Aira. Ed. Contemporánea.
Uma das diversões de se estudar a literatura é ir descobrindo suas camadas. Após a leitura do Pequeno manual de procedimentos, a coletânea de ensaios recolhidos e organizados por Eduard Marquardt e Marco Maschio Chaga, pela editora Arte & Letra, deslizar por um outro livro de Aira é descobrir seus segredos e manobras. É encontrar, na forma de ficção, os preceitos descritos e admirados por ele, seu famoso procedimento, sua escrita disciplinada, seu "fugir para frente". Mas, nenhuma preceito, procedimento, concepção teórica, ou o que seja, adiantaria se não fossem adotados por uma imaginação extrema e desimpedida. Uma capacidade de criar e inovar extrema, sem cair em experimentalismos herméticos e desagradáveis. Ele escreve com uma liberdade e descompromisso invejáveis.
Rio, 020708

terça-feira, julho 01, 2008

Estranhos mundos superpostos

Fala a narradora, a morte, logo nos primeiros parágrafos:
"[...] Basta dizer que, em algum ponto do tempo, eu me erguerei sobre você com toda a cordialidade possível. Sua alma estará em meus braços. Haverá uma cor pousada em meu ombro. E levarei você embora gentilmente."
De A menina que roubava livros, Marcus Zusak. Tradução de Vera Ribeiro. Ed. Intrínseca. ©2006
Fala o narrador, logo nos primeiros parágrafos:
"¿Qué ocurre cuando una vida se desvanece? Quizás otro color desciende sobre el mundo, y se agrega a la gran suma imperfecta y fluctuante."

De Una novela china, César Aira. Ed. Contemporánea. ©1987
Literatura é influência. E, como eu disse antes, existem outras realidades, a ficção se comunica ao longo de um mundo plano e horizontal, percorrido por leitores.  Caso contrário, como dois escritores tão distantes e díspares fariam a mesma associação entre morte e cor? Combinadas as palavras, temos corte.

quinta-feira, junho 26, 2008

Dos começos

Ia dizer inesquecíveis, mas podem me acusar de plágio ou falta de originalidade, a causa do Sérgio Rodrigues e seu Todoprosa. Mas, é verdade, sempre apreciei bons começos, praticamente definem o andamento de todo o resto da leitura.

Dois deles ficaram gravados na memória, o que é difícil, raríssimo, uma vez que minha memória. Bem.

“Encontraria la Maga?”, de O jogo da amarelinha, e “In a whole in the ground, there lived a hobbit”, de O hobbit.

Quando fui a Paris com a esposa, pedi que ela esperasse de um lado da Pont Neuf, eu iria até o outro, depois voltaria e nos encontraríamos no meio. Ela nada entendeu, a minha Maga, que quase nada tem de cronópio e muito de fama. Ah, os papéis que atribuímos a nossas mulheres sem que elas nada saibam...

Pode parecer esdrúxulo misturar Cortazar e Tolkien. Para mim, não. Ambos são, ao fim e ao cabo, literatura de viagem. Adoro Tolkien, adoro suas intermináveis descrições das paisagens da Terra Média, um mundo com uma proporção de realidade que chega ser difícil acreditar que não é de carne e osso, pau e pedra e pó, e nunca mais. E esse começo de O hobbit, bem era um ser minúsculo que um dia botou os pés para fora de seu buraquinho no chão e se perdeu, depois se achou, mas aí já estava irremediavelmente perdido. Horácio Oliveira também era um ser minúsculo, ainda assim nunca coube em seu buraquinho original e teve que sair. Não voltou mais. Quando voltou, não se achou. Irremediavelmente estrangeiro de si. Lamentavelmente, perdeu-se de sua Maga também. Talvez, Rayuella pudesse ter começado assim: "Perderia la Maga?". Sim, perderia. E isso me causa uma profunda tristeza, pois sei bem a importância de encontrarmos a nossa Maga e a mantermos do nosso lado. Por menos Maga que seja. "Matem o cachorro!", gritava Oliveira no final. É, matem o cachorro.


sexta-feira, fevereiro 15, 2008

Tradição oral

A cultura oral parece estar ganhando força lá em casa. O pequeno leitor e eu estamos empolgados com a leitura de A bússola de ouro, enquanto a mãe leitora e a pequena leitora estão imersas em A viagem de Théo, sendo que boa parte da leitura está sendo feita pela pequena.
Após botar as crianças na cama, o pequeno leitor a contragosto ao final de cada capítulo, eu e a esposa leitora nos metemos com o primeiro Espinosa, do Luis Alfredo Garcia-Roza.

Fora isso, terminei de ler Fantasma, do José Castello, que aliás anda sumido. Gostei muito, muito mesmo. Um humor ótimo, ainda que ácido, com toques de amargo, que acho que ele devia transpor para seus artigos por aí. Literatura também é diversão, ainda que ele toque em algumas coisas bem delicadas. Talvez ainda escreva mais longamente sobre esse livro.

E agora, comecei a ler o Dois irmãos, do Milton Hatoum. Estou gostando, principalmente por conhecer um aspecto de Manaus diferente, mais urbano e menos floresta tropical. E a história parece ter a força passional libanesa visível no Lavoura arcaica, do Raduan Nassar, por exemplo. Amores e ódios extremos e absolutos. Parece ser mais uma versão do velho embate de Caim e Abel, Esaú e Jacó...

segunda-feira, janeiro 28, 2008

Parménides, César Aira

A livraria Cultura tem alguns livros em espanhol do César Aira. Comprei (e li!) Parménides, livro de 2006. Diferente de Noites de flores e de Um acontecimento na vida do pintor viajante, ainda assim, genial. Vou colocar uns trechos por aqui:
1
Ésta es la historia triste del escritor Perinola, que vivió acomienzos del siglo quinto antes de Cristo en una colonia griega dela costa italiana del sur. Cuando empezó la historia, aunque ya estaba empezando a dejar de ser joven, era un escirtor joven, una "promesa" como suele decirse; no había gran cosa en la que basar la promesa, pero con poco alcanza, y hasta con nada, si lo que sepromete es algo tan iverificabel com la poesía. En realidade no había escrito casi nada, y lo habían leído menos, pero eso no significaba que la consideración (un tanto ambigua, además) en que lo tenía un puñado de entendidos ou supuestos entendido en poesía careciera de todo fundamento. A veces se dan casos de adivinación social, que suelen entrar en la categoría de profecias autocumplidas. Eso puede deberse a que son tan escasos los escritores bueno que cuando aparece uno, entre mil malos, casi no necesita escribir para que alguien se dé cuenta. Y además está el hecho de que las falsas adivinaciones o las promesas que no se cumplen no se toman en cuenta.
(...)

Bem, a história que segue descreve os anos de convívio de Perinola e do filósofo pré-socrático Parménides, que, por não ter tempo ou preparo para escrever, contrata os serviços do jovem promissor para escrever seu livro, por ele. Perinola seria o primeiro ghost writer da história. Parménides entrou para história como o filósofo que incluiu a discussão do ser e o não ser na filosofia ocidental. Questão insolúvel sobre a qual os filósofos se debatem eternamente. Pois, César Aira usa a literatura para dar uma rasteira na filosofia e contar sua própria versão sobre o surgimento desse dilema hamletiano.

quinta-feira, janeiro 10, 2008

Coisas que eu gostaria de ter escrito (ainda o sono e o tempo)

"É muito tarde, minha cara, e ainda assim vou dormir, sem merecer. Bem, dormir mesmo não vou, apenas sonhar. Como ontem, por exemplo, quando no sonho eu andava até uma ponte ou um cais em cuja amurada por acaso havia dois telefones; eu levava os fones ao ouvido e ficava pedindo notícias dos "confins do mar", mas do telefone só vinha o bramir do oceano e um cântico sem palavras, triste, impressionante. Mesmo depois de perceber que nenhuma voz humana conseguiria sobrepor-se a tais ruídos, não desisti e ali fiquei."
Sonhos, Kafka, trad. Ricardo F. Henrique. Iluminuras


Hoje, estou especialmente sonolento, ainda que muito desperto.

O tempo parado de João Gilberto Noll

Do outro lado da rua, há um sebo. Beta de Aquários. Em sua vitrine, havia outro dia um lote de livros de João Gilberto Noll. Seis livros exatamente, todos da Editora Francis. Os preços variando de R$ 10 a R$ 15. Gastei R$ 65. Eram novos. Alguém teve prejuízo, outros lucraram.
Entrar numa livraria e roubar o tempo, comprar livros, é roubar dinheiro da família. Ler é roubar ainda mais tempo, ao mesmo tempo que se desfruta do objeto do crime. O tempo da leitura passou a ser criminoso e marginal.

Comecei a ler por Mínimos, múltiplos, comuns. Um livro estranho. Diz a apresentação, de Wagner Carelli:
João Gilberto Noll passou três anos e quatro meses na aplicada disciplina de escrever toda semana duas narrativas completas, e de porte incomum: cada relato estava confinado a um máximo de 130 palavras.


A primeira delas, que abre a seção chamada Gênese e que começa pelo Nada:
Nadas

Tecido Penumbroso
Como posso sofrer porque as coisas pararam? Elas andavam tão estouvadas! Por que não deixá-las dormir agora um pouco? Tudo se aquietou, é noite, o mundo vive pra dentro, cegando-se ao sol do sonho. Preciso um pouco desse conteúdo inóspito, ermo com um quase-nada. Não, não é morte, é uma espécie de lacuna essencial, sem a aparência eterna do mármore ou, por outro lado, sem as inscrições carcomidas. Pode-se respirar também na contravida. Depois então, a gente volta para o velho ritmo; aí já não nos reconheceremos ao espelho explícito, tamanha a qualidade desse tecido penumbroso que provamos.
Eu queria achar essa porta para um não-mundo, um não-tempo. Não se trata de uma busca do Nirvana, de fusão com o cosmo, de iluminação. Sequer uma passagem para um mundo mágico no fundo de um armário. Nada disso, ainda que tudo isso. Apenas poder ausentar-se. O mais próximo que já cheguei foi através da leitura e da escrita. Só que, ao retornar, as horas tinham se passado, o relógio não parou. E me vi de volta às horas, as horas, sem realmente ter saído delas. Acho que só mesmo a morte, e nem a morte é garantia de escapar ao tempo.
É melhor ler um livro, as próximas 130 palavras de Noll, talvez. De madrugada, quem sabe, quando as coisas adormecerem. Mas aí, estarei roubando o tempo do sono, um roubo impossível, pois a vítima sempre se derruba o criminoso na ressaca do dia seguinte.