Memórias Líquidas, de Hilda Lucas. Editora de Cultura, 232 páginas. R$ 34,90
Resenha publicada no Globo, em 8/7/2006 “... Não existe sequer uma palavra para nomear quem perde um filho. Viúvos são os que perdem os companheiros, órfãos os que perdem os pais... Mas que nome tem quem perde um filho?”
Hilda Lucas escolheu um tema difícil para publicar o seu primeiro romance. Há quem diga que não existe dor maior do que a perda de um filho. Maior em todos os sentidos, em intensidade e em duração. Uma dor tão terrível que se torna inominável. E algo inominável é muito difícil de ser tratado pela literatura.
O livro conta a história dos membros de uma família e suas diferentes maneiras de lidar com a morte da filha mais velha, quando a menina tinha oito anos. Dez anos depois, mãe, irmã, pai, empregada e amiga da mãe têm suas reações e histórias narradas em capítulos intercalados, dedicados a cada um deles. A voz de claro timbre feminino da narrativa retrata os personagens de forma onisciente. A intenção é mostrar o ponto de vista de cada um sobre a criança morta e sobre os demais, sob a supervisão geral da narradora. Os olhares, no entanto, demoram-se mais sobre a mãe, centro de tensão da rede de relações.
No esquema de Hilda Lucas, filha, ex-marido e empregada procuram levar suas vidas adiante, apesar da estagnação no sofrimento da mãe. Em oposição, uma amiga, que revela-se inimiga, procura manter a mãe em um estado permanente de dor. O suspense da trama é se a mãe conseguirá ou não libertar-se da má influência e superar o trauma, redescobrindo a vida e a filha viva.
A filha mais nova, agora adolescente, é a única a quem a autora concede voz própria, em longos monólogos/diálogos com a irmã morta. Hilda procura mostrar como cada pessoa lida com a perda. No caso da irmã, segundo suas próprias palavras, "comecei a inventar você quando eu vi que tava te esquecendo...". A partir daí, Gabi, a caçula, tem longas conversas com Clara, a irmã mais velha imaginária, que vai crescendo com ela, vivendo juntas a passagem complicada pela adolescência. Além disso, os diálogos com a irmã ausente compensam a distância imposta pela mãe, que não se permite aproximar-se da filha viva. Para Gabi, a gangorra equilibra-se no convívio com o pai, que conseguiu superar a morte da primeira filha. Do mesmo lado do pai, está Amália, a empregada, espécie de escudeira, que vai amarrando as pontas soltas do lar desfeito para que a vida não se desmanche de vez. O conflito é estabelecido pela presença de Beth, que alimenta a tristeza de Ana, a mãe, para nutrir-se de sua dor, íncubo maligno que a narradora revela sem disfarces ao leitor.
O universo de emoções e tensões a que somos expostos no livro de Hilda Lucas, apesar do tema tortuoso, é muito organizado e planejado. A narrativa guarda algumas surpresas que a livram da previsibilidade, no entanto, os personagens e a própria teia de relacionamentos tem algo de esquemático. O conflito “Ana x Beth”, o fio de suspense que mantém o leitor preso à leitura, na verdade, é um conflito interno de Ana de superação da morte da filha e de auto-superação. Nesse aspecto, a personagem Beth poderia ser dispensada se o foco de tensão fosse desviado para o conflito interno de Ana e a resolução de seu relacionamento com a filha viva. O romance talvez ganhasse em profundidade se trabalhasse nesse nível interno ao invés de lidar com essa superação de maneira quase dicotômica, bem x mal, no conflito organizado entre vida e morte, Ana x Beth.
Por outro lado, apesar desta organização que impede o livre fluxo da vida interior dos personagens para além do planejamento narrativo, percebemos na narradora uma extrema afetividade e delicadeza no tratar de seus personagens. O tema da morte de um filho é importante para além dos limites literários e é impossível não se deixar tocar por uma história assim. Quem passa por isso na vida, dificilmente terá o mal encarnado em uma pessoa nociva de carne e osso, que se pode afastar e seguir em diante. A luta verdadeira é pela superação da dor interna, da sensação de fim de tudo, de perda de sentido. Mas, se alguém morre, outros estão vivos ao redor. A verdadeira missão de Ana é redescobrir a filha viva e recuperar os dez anos de convívio esmagados pela dor extrema.
Hilda Lucas, bahiana, radicada em São Paulo, com uma longa passagem pelo Rio, é advogada, tem 52 anos e, escolheu uma das mais terríveis perdas para renascer pela via da literatura, pois, Memórias líquidas, segundo a própria escritora, é uma retomada. Em entrevista no site www.bmsr.com.br, ela diz: “Um ano após enfrentar uma separação, lancei Memórias Líquidas com meu nome de solteira. Foi como resgatar minha certidão de nascimento, meu código genético, minha alma”. Portanto, o livro, além de falar do resgate familiar da lembrança de uma criança morta, serviu de processo de reencontro da autora consigo mesma, com suas origens perdidas. A literatura cumpriu seu papel.
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