Algumas coisas tem data e momento certo para acontecer. Minha primeira leitura de O jogo da amarelinha, por exemplo. Eu tinha uns 18 ou 19 anos. Havia passado no vestibular, para o segundo semestre. Tinha livre alguns meses, que foram dedicados a três atividades decisivas em minha vida: um curso de datilografia, conquistar aquela que viria a ser minha esposa e ler O jogo da amarelinha.
Para me manter dentro do tema do blog, falo apenas da última. Eu tinha muito tempo livre e um livro pesado para me acompanhar. Iniciei a leitura pela ordem sugerida do autor, indo e voltando de um lado para outro, intercalando capítulos, mergulhando em um universo cada vez mais denso de personagens estranhos, exóticos, incrivelmente inteligentes e cultos. As discussões do Clube da Serpente deixavam-me perplexo. Falavam de coisas, realidades, altamente intelectuais. Uma literatura muito diferente daquela feita pelos escritores brasileiros da década de 80, por exemplo. Cortázar diz que o livro antecedeu seu período de maior engajamento político, o que talvez explique o tom existencial do romance, profundamente filosófico. Eu fiquei encantado pelo desfile cultural de artes plásticas, filosofia, jazz, música clássica. Como tudo aquilo criava o cenário parisiense daquele bando de exilados. Como as citações e análises não apareciam gratuitamente, mas dentro do contexto de discussões e questionamentos altamente pertinentes para a vida daquelas pessoas e, principalmente, para a vida de Horácio Oliveira, o protagonista.
Mesmo o ir e vir entre os capítulos tinha uma razão de ser, não se tratava apenas de uma brincadeira estética, um experimento narrativo. Era algo que funcionava. Criava um caminho intrincado de leitura, que ia me arrastando para dentro do livro.
Eu morava em uma casa em meio a um grande quintal. Ao lado da minha mesa de estudos e trabalho, havia uma janela que dava para um verde bambuzal. Pois, em um determinado momento da leitura, fechei as duas janelas do meu quarto. Fechei a porta. Deixei apenas uma pequena luminária apontada para as páginas do livro. Tratava-se de uma relação com a leitura que eu ainda não havia experimentado. Para não me confundir, ia marcando com um X os capítulos já lidos, como as pedrinhas deixadas pelo caminho por João e Maria, mas ainda assim, eu me perdi naquelas páginas.
Nascido em Porto Alegre, o chimarrão me era familiar e eu passei a acompanhar a leitura com uma cuia de mate fervente ao meu lado, que sorvia junto com o argentino Oliveira. Eu, em minha adolescência terminal, me identificava com os becos sem saída para onde o existencialismo de Oliveira o arrastava. Os sapatos molhados, o opressivo ambiente europeu, a chuva e a progressiva alienação.
O livro não me fez mais feliz. A imagem que tinha na época era a de uma rachadura que havia atravessado meu cérebro de fora a fora. Após a leitura, algo havia se deslocado, uma perda de foco da realidade. Uma dificuldade de entender e justificar as coisas. Um ceticismo e uma amargura acentuados, que me acompanham até hoje. Não, culpo o livro pela meu cansaço ou depressão, digamos que ele tenha agravado esses traços. As leituras dessa época eram similares. Kafka, Sartre, Poe, Dostoievski...
Passados mais de vinte anos, tentei retomar a leitura de Rayuela. Não deu. Não sou mais aquele leitor e não tenho mais vontade de percorrer novamente as crises existenciais do egoísta Oliveira. Hoje, minha vida tem sentido. Pessoas dependem de mim, sou importante para elas e não há lugar para o tipo de questionamento existencial de vinte anos atrás.
A leitura ficou gravada em minha alma, com certeza. Hoje me dou conta que foi digerida e processada, cumpriu seu papel. Talvez um dia, quem sabe...
Tenho desafios de leitura importantes na minha mesa de cabeceira, Ulisses, por exemplo. Não sei se a vida dará espaço para um novo mergulho como aquele. A mente e o corpo cansados, o pouco tempo que sobra dedicado aos filhos ou ao sono. A literatura restrita a anotações jogadas num blog e alguma nostalgia.
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