quinta-feira, outubro 06, 2005

O lingüísta e o imperador, Daniel Myerson, tradução de Domingos Demasi, Ediouro.

Quem já esteve no Museu Britânico, provavelmente viu a Pedra de Roseta. Uma pedra preta, enorme, com gravações em hieróglifos egípcios, grego e demótico (uma versão "popular" do grego de então. Daniel Myerson vai atrás dos fatos por trás da pedra e sua decifração, uma história que gira em torno de dois homens do século 18, Jean-François Champollion e Napoleão Bonaparte. Sob a pena de Myerson, ambos homens da mesma estatura intelectual.
Até ler esse livro, Champollion era para mim apenas o nome do francês que decifrou os hieróglifos. Eu nada sabia sobre a pedra, sobre a campanha egípcia de Napoleão e não tinha a menor idéia de que o Imperador francês buscava o conhecimento sobre o passado egípcio, para além de conquistá-lo no presente. Apesar da justificativa estratégica de ocupar o país para cortar as linhas de comércio inglesas, a motivação de Napoleão era repetir, e superar, os feitos de outros grandes conquistadores, que deixaram sua marca naquele país - principalmente Alexandre, cujo legado foi a cidade de Alexandria, que durante séculos brilhou como centro do saber do mundo Mediterrâneo.
O livro de Myerson não é um romance histórico, no sentido estrito da definição de romance, pois é bastante ensaístico. No entanto, para capturar o leitor, ele utiliza uma fascinante trama paralela: a campanha egípcia de Napoleão e a vida de Champollion - trama entremeada de digressões fascinantes sobre outras campanhas egípcias, como a de Alexandre ou dos romanos.
A história do egito por trás de todos os acontecimentos.
Champollion aparece na história aos doze anos, um jovem inquieto, desde cedo um pensador independente e desajustado, que, ao longo da história revela-se um gênio de grandes proporções. E esse é um dos lados da história menos conhecida. Quando o nome Champollion salta dos livros de história do colegial, é para revelar um homem obcecado pelo conhecimento das línguas antigas e tomado pelo desafio de decifrar os hieróglifos, uma língua morta há mil e quinhentos anos.

quarta-feira, outubro 05, 2005

O coração das trevas, Joseph Conrad (final)

No livro Noite do oráculo, de Paul Auster, um dos personagens fala das vezes em que viu o mundo acabar. Invariavelmente, momentos de destruição do homem por si mesmo. O holocausto. Essa é a base do filme Apocalypse now, que Coppola ampliou a partir de O coração das trevas.
Não existe UM fim do mundo. O mundo acaba a cada vez que o homem se destrói, seja individualmente, seja nos grandes holocaustos.
Coppola atualiza para o Vietnam o que os Europeus fizeram durante toda a sua história colonial. A história que Conrad conta poderia se passar em qualquer momento dos 500 séculos das Américas. Até os dias de hoje. Se fosse feita uma adaptação para o horror vivido dentro do Superdome de Nova Orleans, o espírito se manteria.
Assim, a África de Conrad é apenas um pano de fundo para um dos fins do mundo. O coração das trevas é um mergulho nas trevas do coração humano, uma grande metáfora. Conrad se aproveita da cor da pele africana para aprofundar o jogo de luz e escuridão. A escuridão é impenetrável, assim, o homem branco não consegue penetrar na alma dos negros, apenas destruí-los. Assim também, a floresta, a natureza, em seu estado primitivo, original, é impenetrável para o homem branco. Aquele que mergulha nesse mundo, é consumido, como Kurtz. Marlow escapa por pouco. No filme de Coppola, mostra Willard (Marlow) incorporando Kurt no final, mas saindo do inferno e indo para algum lugar desconhecido. Fica claro que Willard não será o mesmo depois daquela missão.
Marlow também é transformado pelo que vive e pelo que NÃO vê. O inimigo é oculto, a escuridão não se revela. Repare que, no filme, não se vê um soldado inimigo. Ouve-se e vê-se as explosões e tiros. O inimigo não se revela. Assim é a África de Conrad, culminando na névoa que os cobre pouco antes de chegar ao acampamento de Kurtz. Tudo é metáfora. O cenário não tem valor em si, mas apenas pela atmosfera que cria para o mergulho de Marlow e seu encontro com Kurtz. Ou consigo mesmo. O verdadeiro inimigo é interno, a resistência à loucura diante do absurdo.
Um dos temas recorrentes do livro que me atraíram é o conceito de inimigo. Conrad fala da brutalidade dos europeus contra os habitantes. O narrador, Marlow, se mostra atônito diante dos que são chamados inimigos. Como considerar como tal uma população que não tem armas para se defender dos tiros brancos. Em um trecho do rio, ele vê um navio francês disparando canhonadas a esmo sobre a floresta, onde, supostamente, havia um acampamento inimigo. Como chamar inimigos quem não pode se defender?
Os "inimigos", em outras circunstâncias, são chamados de trabalhadores ou ainda, de traidores. Os traidores são aqueles condenados por Kurtz, por se voltarem contra a "ordem" instituída por ele. A observação é de Marlow: "(...) aquelas cabeças eram cabeças de rebeldes. Ficou muito chocado porque ri. Rebeldes! Qual seria a próxima definição que iria escutar? Haviam sido chamados de inimigos, criminosos, trabalhadores... e esses eram rebeldes." Tratavam-se de cabeças espetadas em estacas.