quarta-feira, abril 25, 2012

No teu deserto, Miguel Sousa Tavares

"(...) Com os anos, comecei a ficar obcecado em construir coisas. Coisas que durassem, que ficassem depois de mim: filhos, casas, fotografias, livros, reportagens, viagens, histórias que eu pudesse contar e partilhar com os outros. E, de cada vez que concluía uma coisa, passava a outra e assim sucessivamente, como se tentasse ultrapassar o próprio tempo. Tirando o silêncio, a solidão e o espaço, tirando o tempo gasto nisso, todo o resto do tempo que não fosse passado a construir coisas novas parecia-me um desperdício de vida. Consumia-me uma febre insana de caminhar sempre em frente, ao mesmo tempo que tentava preservar, como coisa preciosa, a memória de todos os dias felizes que tinham ficado para trás -- e onde estavam, como as folhas secas de uma rosa deixadas entre as páginas de um livro já lido, os nossos quarenta dias de deserto."
Há algum povo mais triste, mais nostálgico, mais melancólico que os portugueses?

quinta-feira, abril 19, 2012

Homens invisíveis, Leonencio Nossa

"(...) Aliás, obras didáticas consideram que a contribuição do índio se limita ao uso da rede de dormir, à domesticação da mandioca e à preservação de palavras de origem tupi. Suas formas de ver e sentir o mundo, sua relação com o ambiente e seus ritos são ignorados. A maioria dos estudantes acaba vendo o índio de forma simplista, apenas como um ser do passado."
Homens invisíveis, Leonêncio Nossa.

Não, não são do passado. Os conflitos que estão ocorrendo no sul da Bahia são reais e presentes, muito presentes. E não são únicos. Os jornais puxam nossos olhos para lugares distantes, para a geopolítica do Oriente Médio, mas o nosso genocídio local é bem disfarçado, nossas Faixas de Gaza são muitas, mas não as vemos, e não, não são coisa do passado. Infelizmente, a tragédia indígena brasileira chama muito mais atenção dos estrangeiros do que de nós mesmos. Eu nunca tinha ouvido falar de Sydney Possuelo, ignorante eu. Um sujeito que desperta amor ou ódio, mas que incomoda, de uma forma ou de outra. Vim saber dele por causa deste livro: The Unconquered, que estou traduzindo, e depois, por causa deste: Homens invisíveis. Ambos ótimos. Ambos relatos de uma mesma expedição, a diferença, curiosíssima, é que um foi escrito do ponto de vista de um jornalista americano, o outro, de um brasileiro. Muito interessante de comparar.
Há tempos, lia Maíra, do Darcy Ribeiro, os livros de Márcio Souza, uma coletânea de lendas indígenas do Xingu. Já tinha ouvido falar dos irmãos Villas Boas. O assunto sempre me despertou a curiosidade. Mas é isso que os índios despertam entre nós, a curiosidade por algo exótico, que já foi. Não, não, ainda são, apenas, praticamente invisíveis.

quarta-feira, abril 18, 2012

Ismael e Chopin, Miguel Sousa Tavares

"A partir daí, a minha vida mudou. Eu era um coelho que vivia na floresta, como até aí. A minha vida era a de um coelho normal, desde que acordava até que o sol se começava a pôr: eu cuidava da minha toca, procurava comida, brincava com os meus irmãos, ia até o ribeiro beber água, permanecia atento aos perigos e aos meus inimigos. Mas, a partir do final do dia, tinha uma vida que ninguém mais, em toda a floresta, tinha igual. Porque agora eu tinha a música e a música apagava tudo o resto. Como se a própria floresta deixasse de existir, quando o sr. Chopin se sentava ao piano e a sua música saía voando por entre as árvores."
Ismael e Chopin, Miguel Sousa Tavares. Companhia das Letrinhas.