quarta-feira, dezembro 21, 2005

Cortázar e as coisas

Meu primeiro encontro com Cortázar foi num livro de escola, da quinta série, chamado Criatividade. estava uma das pequenas histórias dos cronópios. Falava de um cronópio que, ao se olhar no espelho, viu outra coisa, pois a porta do armário, onde ficava o espelho, estava entreaberta. Em pânico, o Cronópio achou que tudo estava fora de lugar. Não lembro os detalhes, também não achei em casa o meu exemplar de Histórias de Cronópios e de Famas, mas, a aflição do cronópio era se, ao meter as mãos no bolso para pegar as chaves, encontrasse um açucareiro e dentro do açucareiro, botões em lugar do açúcar e assim por diante. Uma desorganização total das coisas no mundo.

Na leitura de Rayuela, as coisas também ganham um realce. No primeiro capítulo ("¿Encontraria a la Maga?”), há um longo trecho sobre uma cerimônia fúnebre para um guarda-chuva, arremessado do alto de uma ponte após ter se desfeito sob um temporal. O capítulo 41, aquele pelo qual Cortázar começou a escrever o livro, Oliveira está mergulhado na edificante tarefa de endireitar pregos tortos à marteladas, com grande prejuízo para seus dedos. No incomensurável capítulo 28, um pesadelo, as cuidadosas instruções para ligar o tocadiscos, “Encienda el tocadiscos, ese botón balnco al borde de la chimenea”. O que faz uma frase tão prosaica assim em um romance dessa dimensão?

Lembro também que ele tem uma série de narrativas que são instruções, para subir uma escada, para atravessar uma piscina...

Em todo Rayuela, as coisas, os objetos, aparecem como molduras, como formas de dar contexto aos personagens, às palavras. Não sei muito bem que significado dar a isso, mas a frase dele, “Sob a dor física, como funda picada metafísica, abunda a literatura” (que também me escapa onde encontrei, vou pesquisar) está sempre voltando para a minha cabeça. O que é o homem sem as coisas? Elas são como lastros da realidade. Se os objetos tem suas funções deslocadas, suas finalidades perdidas, nós perdemos o vínculo com a realidade e enlouquecemos. Lastros, como os de um balão. Afinal de contas, para que servem pregos tortos?

terça-feira, dezembro 13, 2005

Pedro Páramo

Talvez um dia eu comente esse livrinho (pequeno grande), que li há muitos anos atrás e, como os bons livros, marcou minha memória. Mas, enquanto não escrevo de próprio punho, fica o link e um bom comentário do No Mínimo, assinado por Antonio Fernando Borges. A frase que ficou, e que exprime uma das razões de ser deste blog:

“(...)Em tal reino da quantidade e do absurdo – onde milhões de dólares escoam por valeriodutos como se fossem “trocados”, e as dezenas de mortes violentas pelo mundo a fora se reduzem a episódios rotineiros do jornalismo diário –, talvez só mesmo uma atividade em extinção como a literatura ainda possa produzir algum tipo de impacto, sobretudo quando opera às avessas, pela via da exigüidade e do silêncio.(...)”

Por isso Nárnia, por isso Conrad, por isso Cronópios. Por isso. Evasão deliberada.

terça-feira, dezembro 06, 2005

Jogo da amarelinha 2 - Inveja crítica

A edição de Rayuela que tenho é das Ediciones Cátedra, com introdução e comentários de Andrés Amorós. Uma edição acadêmica, explicativa. Em um determinado ponto da introdução, ele escreve:

 

"(...) Creo que entiendo Rayuela: lo que ha hecho su autor, lo que ha querido hacer, la corriente de humor y de inteligencia que corre por debajo de estas páginas. Cuando he conocido a Julio Cortázar (!) – hemos charlado, nos hemos escrito – lo he confirmado."

 

Linhas antes, Andrés Amorós declara sua empatia pelo livro, como existem livros com o qual ele se identifica e comoaqueles no qual não consegue penetrar, "por mucho que aplique sobre ellos las técnicas de análisis literario que me han enseñado...".

Fiquei pensando. Que grande privilégio é ter conhecido Cortázar e conversado com ele sobre seus livros. Que maravilha para um crítico literário poder trocar impressões com o autor de suas obras preferidas.

Por outro lado, também me lembrei das lições aprendidas nas aulas de estudos de textos da faculdade de letras, de minha boa professora Célia Pedrosa e do completo Silviano Santiago. Muitas vezes, alguém falava, "mas o que o autor quis dizer aqui foi..." Do ponto de vista do leitor ativo - e o crítico literário não é mais do que isso, um leitor que constrói leituras - não importa tanto o que o autor quis dizer, mas sim, o que você, leitor, encontrou. Isso é básico. Não desmerece a troca de informações com o autor. Imagine, poder falar ao Cortázar o que você sentiu e viveu ao ler Rayuela?! Ouvir o que ele acha disso?! Mas, o nível de leitura mais importante é aquele incompartilhável. Uma leitura profunda, com efeitos sobre a pessoa do leitor, algo que poucos livros alcançam e quando o fazem, se tornam clássicos. Até porque, um dos temas que percebo centrais em Rayuela é a impossibilidade da comunicação, do pleno compartilhamento dos sentimentos e emoções, mesmo com as pessoas mais próximas de você. No caso de Horário Oliveira, essa impossibilidade chega a extremos. No caso dele, o processo de alienação da realidade pelo qual ele passa é causado por uma excessiva atividade intelectual, ou seja, excesso de "inteligência" e por uma incapacidade emocional de viver seus vínculos afetivos, ou seja, medo de amar, pura e simplesmente. Essa é a impressão de leitura que guardo comigo, de um livro que li há uns 20 anos atrás e que agora volta a me chamar. Será que se eu perguntasse a Cortázar se "era isso que ele queria dizer", ele me confirmará? É será que isso faz alguma diferença? Com certeza não. Em certa medida, o autor de um livro é ele mesmo apenas mais um leitor. Um leitor com um pouco mais de propriedade sobre o texto, mas um leitor.

segunda-feira, dezembro 05, 2005

O jogo da amarelinha

Sinto que devo falar desse livro. A mais radical experiência de leitura pela qual passei. Devo falar de como cheguei ao Cortázar, ao ler uma das pequenas crônicas dos cronópios em um livro na quinta-série. Por enquanto, jogo a pedra na casa mais alta, para me lembrar como fui saltando, em um , de casa em casa até chegar ao:

- Capítulo 28, de Rayuela.

terça-feira, novembro 29, 2005

Uma nota sobre livros de auto-ajuda

A literatura de auto-ajuda é um dos principais filões editoriais atuais. A quantidade de títulos, das mais diversas áreas, é impressionante. Tal força não pode ser desdenhada. Como classificar de ruim uma variedade tão grande de títulos? Alguma coisa deve se salvar.

li dois livros da editora Sextante, especializada na área, cuja exceção é o Código Da Vinci. Na verdade, li um livro e meio, o segundo está em andamento.

O primeiro foi A última grande lição, de Mitch Albom, tradução de José J. Veiga (!)*. O segundo, cuja leitura avança com facilidade, é Velejando com a vida, de Richard Bode, tradução de Maria Luiza Newlands. Gostei dos dois. Não reconheço grandes méritos literários no primeiro, mas gostei assim mesmo. Foi uma leitura anotada, de lápis na mão. Agradável, mas sem grandes lições além da velha e boa sabedoria baseada no bom senso e no amor. O livro tem valor e a história de Mitch Albom com o seu professor moribundo vale à pena ser contada. isso é suficiente e justifica a publicação. Apesar de todas as anotações, pouca coisa ficou registrada em minha mente, precisaria retornar ao livro para recuperar as lembranças e anotações. O que me deixa em dúvida quanto a diferença que uma leitura assim pode fazer na vida das pessoas.

O segundo, pelo menos para mim, tem mais a acrescentar, principalmente porque gosto de barcos e de velejar e o livro trata disso. A cada capítulo, Bode fala de uma situação que enfrentou quando velejava em um pequeno barco em sua juventude, nevoeiro, mudanças de vento, calmaria, peças que se quebram, etc, e trás a situação para um momento de sua vida adulta, refletindo o que o barco, o vento e o mar ensinaram para ele. É bonito, é agradável, mas não é profundo, apenas, como o outro, sensato. Não acho que isso tire o valor de nenhum deles. Com certeza, pensarei nesse livro quando estiver velejando novamente, há uma identificação pessoal, no caso. No entanto, essa identificação não será comum a todos os leitores e não sei que efeito possa ter em outras pessoas. As lições estão . Assim como estão em Fernão Capelo Gaivota, ou em O pequeno príncipe.

Quando eu digo que não são profundos, penso em Dostoiévsky, por exemplo, o grande narrador das almas torturadas. O homem não é sensato, a humanidade não é sensata. A literatura não pode tratar dos grandes temas sob o ponto de vista do que é sensato e fazendo julgamentos dos que não se enquadram. Talvez esteja o "demérito" da literatura de auto-ajuda. Mas, em nenhum desses dois casos, pelo menos, percebi a pretensão de fazer alta literatura. São pessoas que passaram por experiências marcantes e que se dispuseram a compartilhá-las com outras pessoas. São relatos pessoais, alguma coisa fica, nem que seja o prazer de ler uma prosa fluida, que mal não faz e traz conforto.

 

*O asterisco fica por conta de a editora, em seu site, na apresentação do livro, simplesmente omitir o nome do tradutor. O que é grave por si e ainda pior por se tratar de um escritor do calibre de José J. Veiga. Mais respeito pelo profissional, pessoal, por favor! 

segunda-feira, novembro 28, 2005

Admiração leitora

Da Pequena Leitora, 9 anos, ao ver o título Gênio, os 100 autores mais criativos da história da literatura:

- Tem a Ruth Rocha?

Merecia ser incluída, por causa disso.

sexta-feira, novembro 25, 2005

Gênio, Harold Bloom (i)

Gênio, Bloom, Harold. Tradução de José Roberto O'Shea, Ed. Objetiva.

Na esquina da Rua Buarque de Macedo com Rua do Catete existe um sebo de aspecto muito importante. Loja bonita, ampla e atraente. Fica no meu caminho de casa, quando estou voltando com a Pequena Leitora do ballet, ou do judô, com o Pequeno Leitor. Sempre olho a vitrine. Hoje, estava esse belo tijolo, que eu observava a tempos em outras prateleiras. Tinha esperança de ganhá-lo de presente de meu amigo que trabalhava na editora Objetiva, mas, ele saiu de e essa fonte secou. Foi bom enquanto durou :-) Tomara que ele tenha o sucesso que merece em seu novo projeto.

Bem, vi o livro de Bloom na vitrine e resolvi perguntar o preço: R$ 20,00! Eles tinham diversos volumes, lacrados dentro de plásticos. Novos e virgens. O preço normal desse livro seria de uns R$ 80,00. Comprei na hora e não perguntei como eles conseguiam tal preço. São 828 preciosas páginas em um projeto gráfico de qualidade. Um volume sólido, para me acompanhar por alguns anos de leituras ocasionais.

Como não podia deixar de ser, conheci Bloom por sua obra para "crianças", Contos e poemas para crianças extremamente inteligentes de todas as idades. Adoro antologias e as de Bloom são modelares. Antologias são declarações de amor à literatura e, para o leitor, portões para diversos senderos que se bifurcan.

Não sei como será essa leitura. Não há de ser fácil, não há de ser breve. Ele fala de Shakespeare, Cervantes, Montaigne, Milton, Sócrates, Platão, Thomas Mann, Freud, Nietzche, Kafka, Proust... São 100 gênios e ele se propõe a identificar a raiz da genialidade. gostei do prefácio. Um pequeno trecho:

"Ninguém havia de implicar com a idéia de se estudar o contexto de uma obra. Mas reduzir literatura, espiritualidade ou idéias de um historicismo tendencioso é algo que não me interessa. As mesmas pressões sociais, econômicas e culturais produzem, simultaneamente, obras imortais e obras datadas. Thomas Middleton, Philip Massinger e George Chapman vivenciava a mesma energia cultural que, supostamente, modou Hamlet e Rei Lear. Mas as 25 melhores peças de Shakespeare (de um total de 39) não são obras datadas. Se não conseguimos outro meio de explicar Shakespeare (ou Dante, Cervantes, Goethe, Walt Whitman), por que não retomar o estudo da antiga idéia de gênio? Habilidade não é algo inato; genialidade o será, necessariamente."

Antes de mergulhar no mundo de Bloom, a impressão que tenho dele é a de alguém que milita pela preservação de uma forma de arte que vai se perdendo: a boa e velha e formal literatura. Esse livro será um desafio para mim. Assim como Ulisses, em sua nova tradução, também da Objetiva, que repousa em minha mesa de cabeceira e é visitado de vez em quando. Não são livros para serem lidos em nossos tempos. A literatura requer um ritmo do qual estamos cada vez mais distantes, em que a profundidade se perde e a informação interrompe a formação. Enfim...

terça-feira, novembro 08, 2005

Crônicas de Nárnia (ii) - Evasão/Invasão

Não foi por acaso que falei em evasão ao escrever sobre Nárnia.

As passagens entre mundos são uma constante em todos os livros que formam a série. Portões, passagens, acessos estão presentes em todos. A começar pelo O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. Desde o ponto de partida.

O início da história são os quatro irmãos tendo que sair de Londres, fugindo da guerra, para se proteger em uma casa de campo. Ao se esconderem de novo, ocultando-se dos visitantes, eles entram no guarda-roupa e descobrem a passagem para Nárnia. Ou seja, saem da Inglaterra bombardeada para um mundo dominado pela Feiticeira Branca. Mas, a chegada deles desencadeia os acontecimentos que resultam na libertação de Nárnia e os trasnforma em reis e rainhas.

Quem não sonha em poder sair da realidade por uma passagem tão inesperada quanto um guarda-roupa sem fundo e sair em um reino que se liberta com sua chegada?

Isso me fez lembrar de um outro livro em que a passagem entre mundos é importante, Os meninos aquáticos, de Charles Kingsley, que também li pela primeira vez mais ou menos aos doze anos, uma leitura próxima de Nárnia.

Na época, tive um sonho. Sonhei que, sob o tapetinho que ficava ao lado da cama de meus pais, havia uma passagem para o mundo aquático do livro, em que meninos desenvolviam guelras e se trasnformavam em seres marinhos. O sonho foi tão real, que, durante o dia, bem acordado, sem ninguém mais em casa, cheguei a ir até o quarto dos meus pais e buscar esperançosamente uma passagem que existia em meus sonhos. Lembro que eu sabia que nada iria encontrar, mas ainda assim, quem sabe?

quarta-feira, novembro 02, 2005

Nárnia, C.S. Lewis (i)

As Crônicas de Nárnia, C.S. Lewis, Martins Fontes, Trad. Paulo Mendes Campos e Silêda Steuernagel (A última batalha)

 

Literatura de evasão ou literatura de invasão? Será toda a literatura infantil, ou infanto-juvenil, evasiva ou invasiva do mundo das crianças? Que grande necessidade de fantasia é essa que as crianças têm? E os adultos, como ficam nessa história? Enfim, qual é o encantamento? Quando é que a fantasia nos invade?

Nárnia é puro encantamento. Até mesmo para adultos que não tenham se deixado esmagar por coisas como contas a pagar, participação de mercado, ou ainda, e pior ainda, que não tenham deixado a criação dos filhos se transformar em um peso esmagador!

Nárnia me acompanha há muitos séculos, desde o início da história, não muito depois do final da pré-história. (História é quando lembramos o que aconteceu, Pré-história é quando lembramos de sentimentos, uma época em que tristeza e felicidade são uma coisa misturada).

Era o tempo dos livros de bolso das Edições de Ouro, agora Ediouro, quando a editora enviava seu jornalzinho para as escolas e nós escolhíamos os livros. Com data marcada, as encomendas chegavam em pacotes devidamente identificados. Era uma festa! Comentávamos os livrinhos, trocávamos informações e impressões. Começava-se a formar cabeças leitoras e críticas. Bem, esse assunto merece um texto à parte.

O leão, a feiticeira e o guarda-roupa veio em uma dessas encomendas, se não me engano (afinal, era o começo da História...), mas não em meu nome, não foi descoberta minha. A descoberta foi da Irmã Leitora Mais Velha, o que deu ao livro uma aura de leitura quase adulta pois ela devia ter uns quinze anos e eu, uns dez. Tratava-se de um livro difícil, denso...

Na época, eu não sabia que existiam outros livros da série, mas, esse primeiro, ficou marcado, principalmente por seu princípio: um grupo de crianças que se esconde em um guarda-roupa e encontra uma passagem para o mundo da fantasia mais plena se possa imaginar, o reino de Nárnia.

quinta-feira, outubro 06, 2005

O lingüísta e o imperador, Daniel Myerson, tradução de Domingos Demasi, Ediouro.

Quem já esteve no Museu Britânico, provavelmente viu a Pedra de Roseta. Uma pedra preta, enorme, com gravações em hieróglifos egípcios, grego e demótico (uma versão "popular" do grego de então. Daniel Myerson vai atrás dos fatos por trás da pedra e sua decifração, uma história que gira em torno de dois homens do século 18, Jean-François Champollion e Napoleão Bonaparte. Sob a pena de Myerson, ambos homens da mesma estatura intelectual.
Até ler esse livro, Champollion era para mim apenas o nome do francês que decifrou os hieróglifos. Eu nada sabia sobre a pedra, sobre a campanha egípcia de Napoleão e não tinha a menor idéia de que o Imperador francês buscava o conhecimento sobre o passado egípcio, para além de conquistá-lo no presente. Apesar da justificativa estratégica de ocupar o país para cortar as linhas de comércio inglesas, a motivação de Napoleão era repetir, e superar, os feitos de outros grandes conquistadores, que deixaram sua marca naquele país - principalmente Alexandre, cujo legado foi a cidade de Alexandria, que durante séculos brilhou como centro do saber do mundo Mediterrâneo.
O livro de Myerson não é um romance histórico, no sentido estrito da definição de romance, pois é bastante ensaístico. No entanto, para capturar o leitor, ele utiliza uma fascinante trama paralela: a campanha egípcia de Napoleão e a vida de Champollion - trama entremeada de digressões fascinantes sobre outras campanhas egípcias, como a de Alexandre ou dos romanos.
A história do egito por trás de todos os acontecimentos.
Champollion aparece na história aos doze anos, um jovem inquieto, desde cedo um pensador independente e desajustado, que, ao longo da história revela-se um gênio de grandes proporções. E esse é um dos lados da história menos conhecida. Quando o nome Champollion salta dos livros de história do colegial, é para revelar um homem obcecado pelo conhecimento das línguas antigas e tomado pelo desafio de decifrar os hieróglifos, uma língua morta há mil e quinhentos anos.

quarta-feira, outubro 05, 2005

O coração das trevas, Joseph Conrad (final)

No livro Noite do oráculo, de Paul Auster, um dos personagens fala das vezes em que viu o mundo acabar. Invariavelmente, momentos de destruição do homem por si mesmo. O holocausto. Essa é a base do filme Apocalypse now, que Coppola ampliou a partir de O coração das trevas.
Não existe UM fim do mundo. O mundo acaba a cada vez que o homem se destrói, seja individualmente, seja nos grandes holocaustos.
Coppola atualiza para o Vietnam o que os Europeus fizeram durante toda a sua história colonial. A história que Conrad conta poderia se passar em qualquer momento dos 500 séculos das Américas. Até os dias de hoje. Se fosse feita uma adaptação para o horror vivido dentro do Superdome de Nova Orleans, o espírito se manteria.
Assim, a África de Conrad é apenas um pano de fundo para um dos fins do mundo. O coração das trevas é um mergulho nas trevas do coração humano, uma grande metáfora. Conrad se aproveita da cor da pele africana para aprofundar o jogo de luz e escuridão. A escuridão é impenetrável, assim, o homem branco não consegue penetrar na alma dos negros, apenas destruí-los. Assim também, a floresta, a natureza, em seu estado primitivo, original, é impenetrável para o homem branco. Aquele que mergulha nesse mundo, é consumido, como Kurtz. Marlow escapa por pouco. No filme de Coppola, mostra Willard (Marlow) incorporando Kurt no final, mas saindo do inferno e indo para algum lugar desconhecido. Fica claro que Willard não será o mesmo depois daquela missão.
Marlow também é transformado pelo que vive e pelo que NÃO vê. O inimigo é oculto, a escuridão não se revela. Repare que, no filme, não se vê um soldado inimigo. Ouve-se e vê-se as explosões e tiros. O inimigo não se revela. Assim é a África de Conrad, culminando na névoa que os cobre pouco antes de chegar ao acampamento de Kurtz. Tudo é metáfora. O cenário não tem valor em si, mas apenas pela atmosfera que cria para o mergulho de Marlow e seu encontro com Kurtz. Ou consigo mesmo. O verdadeiro inimigo é interno, a resistência à loucura diante do absurdo.
Um dos temas recorrentes do livro que me atraíram é o conceito de inimigo. Conrad fala da brutalidade dos europeus contra os habitantes. O narrador, Marlow, se mostra atônito diante dos que são chamados inimigos. Como considerar como tal uma população que não tem armas para se defender dos tiros brancos. Em um trecho do rio, ele vê um navio francês disparando canhonadas a esmo sobre a floresta, onde, supostamente, havia um acampamento inimigo. Como chamar inimigos quem não pode se defender?
Os "inimigos", em outras circunstâncias, são chamados de trabalhadores ou ainda, de traidores. Os traidores são aqueles condenados por Kurtz, por se voltarem contra a "ordem" instituída por ele. A observação é de Marlow: "(...) aquelas cabeças eram cabeças de rebeldes. Ficou muito chocado porque ri. Rebeldes! Qual seria a próxima definição que iria escutar? Haviam sido chamados de inimigos, criminosos, trabalhadores... e esses eram rebeldes." Tratavam-se de cabeças espetadas em estacas.