terça-feira, agosto 21, 2012

Previsão do Tempo - Dias com rajadas de saudades

Este é o texto que li na missa em memória de meu pai:


Previsão do tempo
De Daniel Estill para Denis Edward Estill

Hoje de manhã, fui fazer observações meteorológicas no Aterro do Flamengo com Adriana e preparei um boletim de previsão do tempo que leio agora, em primeira mão, para todos vocês.
A primeira previsão que fiz foi que o tempo, nós próximos muitos anos, vai passar.
No período, teremos momentos de grandes instabilidades, mas também de calmarias.
Nós próximos anos, haverá dias de sol, dias de chuva, e dias de sol e chuva.
Teremos muitas noites de cinema e jantar, eventuais peças de teatro, concertos no Municipal, apresentações do coral.
Teremos fases de tristeza profunda, mas elas também, vão passar. Teremos jantares em família, às vezes só um filho ou uma filha com sua mãe, às vezes, todo mundo e uma grande bagunça.
Teremos desentendimentos, novas mágoas, decepções. Teremos novos encontros e algumas possibilidades de reconciliações. Mas isso não depende do tempo, mas do que fazemos com ele.
Teremos, infelizmente, novas doenças e partidas, mas também novas chegadas. Novos filhos e netos. Novos pais querendo educar bem os seus filhos e avôs e avós empenhando-se em estragar o serviço.
Teremos passeios de barco, teremos caminhadas, teremos viagens de avião. Eventualmente, engarrafamentos enormes, que desaguarão em pistas liberadas.
A observação das nuvens sobre o Pão de Açúcar prenuncia visitas de amigos, talvez novas amizades, outras renovadas.
O voo das gaivotas informa que mesmo pessoas distantes pensam e olham por nós, mas seguem seus caminhos em liberdade.
Havia poucas maritacas hoje no Aterro, o que pode sinalizar momentos de silêncio matinal, mas que serão interrompidos pela algaravia do dia a dia, quando despertarem as maritacas.
Observei grandes massas térmicas de pessoas indo e vindo, jogando vôlei, pedalando, correndo e caminhando. Isso prenuncia dias de trabalho, de cansaço, eventuais desânimos, mas também dias de esforço e superação.
O estudo meteorológico de hoje de manhã permite-me afirmar que, nós próximos anos, teremos momentos intensos da vida acontecendo incansavelmente. Os sinais anunciam que o tempo passa e a vida vai com ele.
Sem precisar de sinais explícitos do voo dos pássaros, do movimento das árvores sob o vento, do ir e vir de pessoas e seus cães, sei que todos esses momentos serão acompanhados pela lembrança viva do olhar brilhante e da risada fácil do meu pai, que nos acompanharam até seus últimos dias, a despeito de todo o sofrimento.
Para mim, Deus é silêncio, ausência e constância. Agora, meu pai está com ele, em silêncio, ausente e constante.

Rio de Janeiro, 4 de agosto de 2012.

quinta-feira, maio 10, 2012

Dom Casmurro no teu deserto

Perto do dia das mães, resolvi visitar Bentinho em Mata-cavalos e surpreendi-me com a maneira como o Casmurro evoca a mãe e o pai. Havia esquecido:
"Não me lembra nada dele, a não ser vagamente que era alto e usava cabeleira grande; o retrato mostra uns olhos redondos, que me acompanham para todos os lados, efeito da pintura que me assombrava em pequeno. O pescoço sai de uma gravata preta de muitas voltas, a cara é toda rapada, salvo um trechozinho pegado às orelhas. O de minha mãe mostra que era linda. Contava então vinte anos, e tinha uma flor entre os dedos. No painel parece oferecer a flor ao marido. O que se lê na cara de ambos é que, se a felicidade conjugal pode ser comparada à sorte grande, eles a tiraram no bilhete comprado de sociedade.
"(...)São retratos que valem por originais. O de minha mãe, estendendo a flor ao marido, parece dizer: 'Sou toda sua , meu guapo cavalheiro(!)' O de meu pai, olhando para a gente, faz este comentário: 'Vejam como esta moça me quer...' Se padeceram moléstias, não sei, como não sei se tiveram desgostos: era criança e comecei por não ser nascido. Depois da morte dele, lembra-me que ela chorou muito; mas aqui estão os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo lhes tirasse a primeira expressão. São como fotografias instantâneas da felicidade."
Obviamente, a exaltação do matrimônio dos pais servirá de contraponto para a amargura do seu próprio, pois nada de bom há de restar de uma leitura de Machado de Assis (afinal de contas, "não tive filhos...").
Ainda assim, dona Glória era feliz e estendia uma flor ao marido, igualmente feliz, naquelas fotografias instantâneas da felicidade.

Mas aí, lembro-me da recente leitura do Miguel Sousa Tavares (no livro citado no post mais abaixo):
"(...)Dizem que as fotografias não mentem, mas essa é a maior mentira que já ouvi.
(...)Nisso, quando guardam para sempre um instante que nunca se repetirá, as fotografias não mentem -- esse instante existiu mesmo. Porém, a mentira consiste em pensar que esse instante é eterno, que dois amantes felizes e abraçados  numa fotografia ficaram para sempre felizes e abraçados. É por isso que não gosto de olhar para fotografias antigas: se alguma coisa elas reflectem, não é a felicidade, mas sim a traição -- quando mais não seja, a traição do tempo, a traição daquele mesmo instante em que ali ficámos aprisionados no tempo. Suspensos e felizes, como se a felicidade se pudesse suspender carregando no botão 'pausa' no filme da vida."
Traição. São tantas as formas de trair. Mais de século separa um livro do outro e aí os tenho, tão parecidos.

quarta-feira, abril 25, 2012

No teu deserto, Miguel Sousa Tavares

"(...) Com os anos, comecei a ficar obcecado em construir coisas. Coisas que durassem, que ficassem depois de mim: filhos, casas, fotografias, livros, reportagens, viagens, histórias que eu pudesse contar e partilhar com os outros. E, de cada vez que concluía uma coisa, passava a outra e assim sucessivamente, como se tentasse ultrapassar o próprio tempo. Tirando o silêncio, a solidão e o espaço, tirando o tempo gasto nisso, todo o resto do tempo que não fosse passado a construir coisas novas parecia-me um desperdício de vida. Consumia-me uma febre insana de caminhar sempre em frente, ao mesmo tempo que tentava preservar, como coisa preciosa, a memória de todos os dias felizes que tinham ficado para trás -- e onde estavam, como as folhas secas de uma rosa deixadas entre as páginas de um livro já lido, os nossos quarenta dias de deserto."
Há algum povo mais triste, mais nostálgico, mais melancólico que os portugueses?

quinta-feira, abril 19, 2012

Homens invisíveis, Leonencio Nossa

"(...) Aliás, obras didáticas consideram que a contribuição do índio se limita ao uso da rede de dormir, à domesticação da mandioca e à preservação de palavras de origem tupi. Suas formas de ver e sentir o mundo, sua relação com o ambiente e seus ritos são ignorados. A maioria dos estudantes acaba vendo o índio de forma simplista, apenas como um ser do passado."
Homens invisíveis, Leonêncio Nossa.

Não, não são do passado. Os conflitos que estão ocorrendo no sul da Bahia são reais e presentes, muito presentes. E não são únicos. Os jornais puxam nossos olhos para lugares distantes, para a geopolítica do Oriente Médio, mas o nosso genocídio local é bem disfarçado, nossas Faixas de Gaza são muitas, mas não as vemos, e não, não são coisa do passado. Infelizmente, a tragédia indígena brasileira chama muito mais atenção dos estrangeiros do que de nós mesmos. Eu nunca tinha ouvido falar de Sydney Possuelo, ignorante eu. Um sujeito que desperta amor ou ódio, mas que incomoda, de uma forma ou de outra. Vim saber dele por causa deste livro: The Unconquered, que estou traduzindo, e depois, por causa deste: Homens invisíveis. Ambos ótimos. Ambos relatos de uma mesma expedição, a diferença, curiosíssima, é que um foi escrito do ponto de vista de um jornalista americano, o outro, de um brasileiro. Muito interessante de comparar.
Há tempos, lia Maíra, do Darcy Ribeiro, os livros de Márcio Souza, uma coletânea de lendas indígenas do Xingu. Já tinha ouvido falar dos irmãos Villas Boas. O assunto sempre me despertou a curiosidade. Mas é isso que os índios despertam entre nós, a curiosidade por algo exótico, que já foi. Não, não, ainda são, apenas, praticamente invisíveis.

quarta-feira, abril 18, 2012

Ismael e Chopin, Miguel Sousa Tavares

"A partir daí, a minha vida mudou. Eu era um coelho que vivia na floresta, como até aí. A minha vida era a de um coelho normal, desde que acordava até que o sol se começava a pôr: eu cuidava da minha toca, procurava comida, brincava com os meus irmãos, ia até o ribeiro beber água, permanecia atento aos perigos e aos meus inimigos. Mas, a partir do final do dia, tinha uma vida que ninguém mais, em toda a floresta, tinha igual. Porque agora eu tinha a música e a música apagava tudo o resto. Como se a própria floresta deixasse de existir, quando o sr. Chopin se sentava ao piano e a sua música saía voando por entre as árvores."
Ismael e Chopin, Miguel Sousa Tavares. Companhia das Letrinhas.

domingo, fevereiro 26, 2012

Humildade, humilus, humus

Escreve Alexander Gideon, personagem de Amós Oz em A caixa-preta, tradução de Nancy Rozenchan, Cia das Letras:
"(...) E o que é humildade? Humildade vem de humilus, que pelo visto provém de humus, "terra". Por acaso há humildade na terra? Aparentemente qualquer um pode fazer o que quiser dela. Cavar, revirar, plantar. Mas no fim ela engole todos os que a dominam. E fica lá, num silêncio eterno."
Uma mãe que devora inexoravelmente todos os seus rebentos. Do pó ao pó.

terça-feira, janeiro 10, 2012

Os reis malditos, Maurice Druon

"Porque, naqueles séculos em que grande número de crianças morriam no berço e a metade das mulheres nos partos, aquela época em que as epidemias devastavam a maturidade, em que os ferimentos não se curavam senão raramente, em que as feridas não se fechavam, em que a Igreja ensinava a pensar sem repouso na morte, em que as imagens dos santuários mostravam vermes roendo cadáveres, e em que cada qual se sentia durante toda a sua vida, como que carregando a própria carcaça, a idéia de morte era habitual, familiar, natural. Ver um homem lançar o último suspiro não seria, como para nós, uma trágica advertência da ordem de nosso destino comum."
in O rei de ferro, Maurice Druon, tradução de Nair Lacerda, Difel. 1. volume de Os reis malditos.

É admirável pensar que Maurice Druon é também o autor de O menino do dedo verde, não?