"Não me lembra nada dele, a não ser vagamente que era alto e usava cabeleira grande; o retrato mostra uns olhos redondos, que me acompanham para todos os lados, efeito da pintura que me assombrava em pequeno. O pescoço sai de uma gravata preta de muitas voltas, a cara é toda rapada, salvo um trechozinho pegado às orelhas. O de minha mãe mostra que era linda. Contava então vinte anos, e tinha uma flor entre os dedos. No painel parece oferecer a flor ao marido. O que se lê na cara de ambos é que, se a felicidade conjugal pode ser comparada à sorte grande, eles a tiraram no bilhete comprado de sociedade.
"(...)São retratos que valem por originais. O de minha mãe, estendendo a flor ao marido, parece dizer: 'Sou toda sua , meu guapo cavalheiro(!)' O de meu pai, olhando para a gente, faz este comentário: 'Vejam como esta moça me quer...' Se padeceram moléstias, não sei, como não sei se tiveram desgostos: era criança e comecei por não ser nascido. Depois da morte dele, lembra-me que ela chorou muito; mas aqui estão os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo lhes tirasse a primeira expressão. São como fotografias instantâneas da felicidade."Obviamente, a exaltação do matrimônio dos pais servirá de contraponto para a amargura do seu próprio, pois nada de bom há de restar de uma leitura de Machado de Assis (afinal de contas, "não tive filhos...").
Ainda assim, dona Glória era feliz e estendia uma flor ao marido, igualmente feliz, naquelas fotografias instantâneas da felicidade.
Mas aí, lembro-me da recente leitura do Miguel Sousa Tavares (no livro citado no post mais abaixo):
"(...)Dizem que as fotografias não mentem, mas essa é a maior mentira que já ouvi.
(...)Nisso, quando guardam para sempre um instante que nunca se repetirá, as fotografias não mentem -- esse instante existiu mesmo. Porém, a mentira consiste em pensar que esse instante é eterno, que dois amantes felizes e abraçados numa fotografia ficaram para sempre felizes e abraçados. É por isso que não gosto de olhar para fotografias antigas: se alguma coisa elas reflectem, não é a felicidade, mas sim a traição -- quando mais não seja, a traição do tempo, a traição daquele mesmo instante em que ali ficámos aprisionados no tempo. Suspensos e felizes, como se a felicidade se pudesse suspender carregando no botão 'pausa' no filme da vida."Traição. São tantas as formas de trair. Mais de século separa um livro do outro e aí os tenho, tão parecidos.
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