quarta-feira, setembro 14, 2011

Desejo que não quer deixar de ser desejo

"Em hebraico, diríamos um 'desejo de Shalom'. O Shalom que normalmente traduzimos por 'paz' significa 'estar inteiro'. Nós não estamos em paz porque não estamos inteiros, daí a razão pela qual nós também chamarmos isso de desejo de 'realização': realizar o Ser, o Self que nós somos. O homem realizado é aquele que alcançou o Tudo no qual ele pode, enfim, conhecer a plenitude e o apaziguamento.
"Para alguns, o Ser, o Self, é o fim do desejo. O que mais poderíamos desejar além do "tudo"? Para outros, uma experiência de plenitude, de inteireza, em que há lugar para o outro14, é possível. Ela dá lugar a um outro desejo, desejo do Outro, que não é apenas desejo de ser desejado, mas desejo do Outro que é querido por si mesmo na sua alteridade e não como um Ser que preenche meu desejo; pelo contrário, como Ser que aviva o meu desejo, água viva que jamais sacia completamente a minha sede..." (sublinhado meu)

E a nota da tradutora:
14 No original francês: "Pour d'autres, une expérience de plénitude, d'entièreté, qui 'n'affiche pas complet' est possible". O autor procura passar a idéia de uma pessoa inteira, mas que não se apresenta como auto-satisfeita, cheia de si mesmo, sem um lugar para o outro em sim. Ele fala de alguém inteiro, mas não completo ou repleto; o "completo" só é possível graças à presença do outro (N.T.). (subl. meu)

Deus não existe! (...eu rezo para Ele todos os dias), Jean-Yves Leloup, trad. Karin Andrea de Guise, editora Vozes, p. 28.

Não é bacana essa ideia de um desejo que não quer ser saciado para poder continuar desejando e buscando? É a antiga crítica à ideia do sábio na montanha. Acho que foi em O fio da navalha, do Somerset Maugham, em que aparece algo como "é mais fácil ser santo no alto de uma montanha", e o Larry (era Larry o nome do protagonista, eu acho), após uma experiência de iluminação mística, volta ao mundo para ser motorista de táxi e escreve um livro sobre pessoas que tiveram sucesso na vida. Algo assim. Nada muito diferente do percurso de Jesus Cristo, que se afastou durante anos para depois retornar para pregar, e praticar, seus mandamentos fundamentais, de amar a Deus e ao próximo.

Esse desejo que se quer desejo sempre é essa nossa necessidade de busca constante, e que já recebeu tantos nomes em tantas áreas do conhecimento. E ao mesmo tempo, aceitarmos a ideia de que somos seres desejantes pode nos ajudar a conviver com essa insaciedade. Talvez, parte dessa iluminação, ou realização, ou como quer que queiram chamar, seja exatamente aceitar e amar essa incompletude tão completa e plena.

Lembrei que encontrei essa ideia, talvez pela primeira vez, lendo Murilo Mendes, que, em algum lugar, disse que a fé, para ele, era uma fonte de inquietação, não de certezas. Acho que foi no livro de memórias A idade do serrote.

É a tal da sabedoria humilde, porque se reconhece incompleta e ignorante. É o combustível da busca, a gasolina da inquietação e, até mesmo, da angústia existencial.


Independente de crenças ou descrenças.


2 comentários:

Fabiana disse...

"... Ser que aviva meu desejo, água viva que jamais sacia completamente a minha sede"...

E o bom é não matá-la - mas tentar matá-la. Todos os dias. ;)

Muito lindo :)

Daniel Estill disse...

Né? ;)