quinta-feira, setembro 08, 2011

A chave da memória

(...) Na manhã da segunda-feira tio Hakim continuava falando, e só interrompia a fala para rever os animais e dar uma volta no pátio da fonte, onde molhava o rosto e os cabelos; depois retornava com mais vigor, com a cabeça formigando de cenas e diálogos, como alguém que acaba de encontrar a chave da memória.
Relato de um certo oriente, Milton Hatoum, ed. Companhia das Letras, 3a. ed. p.34.
A associação foi instantânea. Essa "chave da memória" deve estar naquela casa das chaves em que a Emília, ao invés de desligar a chave da guerra, desliga a chave do tamanho e a humanidade se vê reduzida a dimensões liliputianas. Na história de Monteiro Lobato, Guliver ficou sendo o porco Rabicó. A chave da memória também deve ser a madeleine de Proust, ou o ratatouille servido ao crítico de gastronomia Anton Ego.

A chave da memória deve ser do tipo que tem senha. É preciso lembrar os números na seqüência certa. E devem ser várias chaves, uma vai abrindo a outra. E a gente vai lembrando das coisas à medida que essas chaves vão sendo usadas. E vamos esquecendo à medida que as vamos perdendo. E é tão esquisito achar uma chave que não se sabe de onde é. Na rua, no fundo de uma gaveta, numa caixa de coisas avulsas.

Uma vez, herdei a mesa de trabalho do meu avô paterno. Uma mesa enorme, de madeira escura. Quando me mudei, tive que me desfazer da mesa, mas guardei a chave. Por um bom tempo. Agora a chave foi perdida também. Mas ficou comigo por tempo suficiente para eu ainda poder vê-lo trabalhando em sua mesa, com penas de metal, caneta tinteiro, mata-borrão, numa época em que as canetas Bic já eram banais havia muito tempo. Ele mantinha criteriosamente suas contas em dia,  em caderninhos, livros-caixa. Uma caligrafia perfeita. Deixava a gente experimentar aquilo tudo, sujar os dedos de tinta. Ganhei também a caneta tinteiro dele. Minha tia, irmã mais nova do meu pai, a deu para mim há alguns anos. Meu pai. Eu bem que queria achar a chave da memória dele. Vou "fazer de conta" e pedir um pouco de pó de pirlimpimpim para a Emília, para dar um pulo na casa das chaves. E a chave da memória acaba sendo a ficção mesmo. Faz de conta que...



 

Um comentário:

Flávia Estill disse...

Tenho uma caixa de chaves aqui em casa, antigas da casa da vóvó,lindas!E também de todas as casas aonde já morei. E já me mudei tanto, tanto...É dificil para mim me desfazer das chaves. Mas não pergunte qual chave abre o que pois a minha memória é muito curta, oposto da memória do pai que é longa. Ele lembra do passado distante, do qual pouco me recordo. E eu lembro do que acabei de comer.Sem julgamentos do que é melhor ou pior, tudo é muito simples se agente aceita o modo de ser de cada um.
Mas a imagem da memória conectada e expansiva me lembra das gotas de mercúrio que vão se juntando e fazendo uma gota grande.