sexta-feira, abril 30, 2010

Embrulho para presente

Em uma de suas visitas ao Rio de Janeiro, meu avô me levou à Biblioteca Nacional. Eu devia ter uns oito anos. Começara a ler há pouco tempo e os livros recém começavam a lançar seu feitiço sobre mim. Feitiço, maldição, benção. Já foram isso tudo. Hoje permanecem um desafio, uma provocação, como nunca deixaram de ser.

Daquela visita, lembro-me de um balcão negro, na altura do meu nariz. Meu avô conversava com o homem atrás do balcão, pareciam se conhecer, mas era improvável. Meu avô não morava no Rio, vinha de longe, vinha da cidade onde eu nasci e da qual fui separado aos quatro anos de idade. Estar com ele era um pouco da minha primeira infância que voltava para essa outra infância de oito anos, tão diferente, da qual guardo poucas lembranças de felicidade. Não, não se conheciam. No entanto, tornaram-se cúmplices.

O homem do balcão me deu um presente. Preparou o embrulho ali mesmo, na minha frente. Com um papel azul, brilhante, embrulhou algo numa minúscula caixinha, do tamanho de um dedal. A caixinha não tinha peso e ele disse que eu só poderia abri-la depois de sair. Meu avô ria, quase que para si, mas dizia-me, sério, que era um presente valioso. Uma minúscula caixinha e papel brilhante azul, leve como um pedaço de vento.

Naquele dia, conheci a Biblioteca Nacional. Seus mármores, arquivos, escadas. A impressionante sala de leitura com suas colunas altíssimas e mesas de estudo enfileiradas. Não me oprimia, me sentia bem lá. Aliás, eu me sentia bem em qualquer lugar em que estivesse com meu avô.

Finalmente, saímos. Descemos a escadaria na avenida Rio Branco, caminhamos até o ponto de ônibus. Eu, naturalmente, estava ansioso. Tinha oito anos e meu avô acabara de me mostrar uma parte do mundo que se tornaria parte de mim para sempre. Então, desfiz o embrulho, um origami, uma dobradura fechada em torno do nada. O presente era vazio. Entendi que era uma brincadeira, achei graça, apesar do desapontamento. Afinal, o que poderia caber numa caixinha daquele tamanho que pudesse ter qualquer valor? Meu avô talvez soubesse. O homem do balcão também. Deram-me um presente vazio.

Ao longo dos anos, fui preenchendo aquele pequeno embrulho. Acho que todos os livros que eu li estão lá. Estão guardados, numa caixinha vazia, cheia de histórias e de lembranças de meu avô e de um passeio pelo centro do Rio quando eu tinha oito anos, uma infância que pode não ter sido das mais felizes, mas foi repleta de significados que ainda se revelam novos, tanto tempo depois.

3 comentários:

Unknown disse...

Gostei muito do que você escreveu, Daniel.

Nossa relação com os avós, muitas vezes, é mágica.

Um abraço,

Martha

Natalia disse...

que blog interessante! vou começar a passar por aqui.
obrigada por compartilhar.

Bete Koeninger disse...

Daniel, não sei você já tem alguma coisa sua publicada (fora blogs e molekes). Se não tem, pense nisso. Ler os seus textos é um deleite. E você ainda me fez lembrar também do meu avô, que embora não tenha me levado à Biblioteca Nacional, tinha um quarto de empregada cheio de livros, onde eu descobri o prazer da leitura.
Eu li há pouco o "Coração de Tinta", da Cornelia Funke, e recomendo. Foi lançado como literatura juvenil, mas é um pequeno tesouro para qualquer um que ame livros. Acho que você gostaria.
Abraço