domingo, setembro 18, 2011

A massagista japonesa - Moacyr Scliar

Adoráveis as crônicas do Moacyr Scliar. A ignorância é uma benção porque nos permite sempre conhecer novas coisas. Nunca tinha lido nada de Moacyr Scliar. De vez em quando compro um livrinho de bolso da L&PM para levar num ônibus ou metrô. Numa dessas, foi essa antologia de crônicas. Espero não estar infringindo nenhuma lei ao copiar uma delas aqui. Uma bem pequena.
Decisão
Um homem vai ao médico para saber o resultado do exame; chocado, ouve o veredicto: aquilo que mais temia aconteceu, o exame revelou câncer. Quanto tempo me resta, pergunta o homem, a voz trêmula. Não muito, responde o médico, penalizado mas decidido a nada ocultar: não adianta varrer a sujeira para baixo do tapete. Não refeito do golpe, o homem sai à rua. O sol brilha, as pessoas caminham apressadas, mas ele já está longe de tudo, sente-se como encerrado numa espessa redoma de vidro na qual não penetram os ruídos nem os odores. Mas o homem não se deixará abater; reagirá, é o que resolve. Já que tem pouco tepo de vida, fará as coisas que sempre teve vontade de fazer. A primeira delas: vai ao escritório onde está empregado como contador e manda o patrão, que o oprimiu durante anos, à merda. Antes que o homem se refaça da surpresa, ele sai, não sem dizer à secretária que ela é muito, muito boa, ao que ela reage admirada, mas não desagradada. Volta para casa, conta à mulher o que aconteceu. Ela chora naturalmente, pergunta o que ele pretende fazer. Nada, ele diz. Pescar. Sempre gostou de pescar, e é o que fará agora: irá para a praia, passará os dias pescando.
Nem chega a arrumar os caniços. O telefone toca: é o médico, aflito mas alegre. Trocaram os exames no laboratório, ele anuncia, você não tem câncer, é uma simples inflamação.
Uma simples inflamação: o homem deixa-se cair na cadeira, perplexo. Que fará agora? Agora que mandou o patrão longe, agora que pretendia passar os dias pescando (se possível, isto ele só pensou, acompanhado da secretária boa)? Que fará agora, pensa, aterrorizado, agora que não tem câncer?
in Moacyr Scliar, A massagista japonesa,  ed. L&PM, pág. 78.

Humor cáustico, às vezes ingênuo, antigo e terno.

quarta-feira, setembro 14, 2011

Desejo que não quer deixar de ser desejo

"Em hebraico, diríamos um 'desejo de Shalom'. O Shalom que normalmente traduzimos por 'paz' significa 'estar inteiro'. Nós não estamos em paz porque não estamos inteiros, daí a razão pela qual nós também chamarmos isso de desejo de 'realização': realizar o Ser, o Self que nós somos. O homem realizado é aquele que alcançou o Tudo no qual ele pode, enfim, conhecer a plenitude e o apaziguamento.
"Para alguns, o Ser, o Self, é o fim do desejo. O que mais poderíamos desejar além do "tudo"? Para outros, uma experiência de plenitude, de inteireza, em que há lugar para o outro14, é possível. Ela dá lugar a um outro desejo, desejo do Outro, que não é apenas desejo de ser desejado, mas desejo do Outro que é querido por si mesmo na sua alteridade e não como um Ser que preenche meu desejo; pelo contrário, como Ser que aviva o meu desejo, água viva que jamais sacia completamente a minha sede..." (sublinhado meu)

E a nota da tradutora:
14 No original francês: "Pour d'autres, une expérience de plénitude, d'entièreté, qui 'n'affiche pas complet' est possible". O autor procura passar a idéia de uma pessoa inteira, mas que não se apresenta como auto-satisfeita, cheia de si mesmo, sem um lugar para o outro em sim. Ele fala de alguém inteiro, mas não completo ou repleto; o "completo" só é possível graças à presença do outro (N.T.). (subl. meu)

Deus não existe! (...eu rezo para Ele todos os dias), Jean-Yves Leloup, trad. Karin Andrea de Guise, editora Vozes, p. 28.

Não é bacana essa ideia de um desejo que não quer ser saciado para poder continuar desejando e buscando? É a antiga crítica à ideia do sábio na montanha. Acho que foi em O fio da navalha, do Somerset Maugham, em que aparece algo como "é mais fácil ser santo no alto de uma montanha", e o Larry (era Larry o nome do protagonista, eu acho), após uma experiência de iluminação mística, volta ao mundo para ser motorista de táxi e escreve um livro sobre pessoas que tiveram sucesso na vida. Algo assim. Nada muito diferente do percurso de Jesus Cristo, que se afastou durante anos para depois retornar para pregar, e praticar, seus mandamentos fundamentais, de amar a Deus e ao próximo.

Esse desejo que se quer desejo sempre é essa nossa necessidade de busca constante, e que já recebeu tantos nomes em tantas áreas do conhecimento. E ao mesmo tempo, aceitarmos a ideia de que somos seres desejantes pode nos ajudar a conviver com essa insaciedade. Talvez, parte dessa iluminação, ou realização, ou como quer que queiram chamar, seja exatamente aceitar e amar essa incompletude tão completa e plena.

Lembrei que encontrei essa ideia, talvez pela primeira vez, lendo Murilo Mendes, que, em algum lugar, disse que a fé, para ele, era uma fonte de inquietação, não de certezas. Acho que foi no livro de memórias A idade do serrote.

É a tal da sabedoria humilde, porque se reconhece incompleta e ignorante. É o combustível da busca, a gasolina da inquietação e, até mesmo, da angústia existencial.


Independente de crenças ou descrenças.


quinta-feira, setembro 08, 2011

A chave da memória

(...) Na manhã da segunda-feira tio Hakim continuava falando, e só interrompia a fala para rever os animais e dar uma volta no pátio da fonte, onde molhava o rosto e os cabelos; depois retornava com mais vigor, com a cabeça formigando de cenas e diálogos, como alguém que acaba de encontrar a chave da memória.
Relato de um certo oriente, Milton Hatoum, ed. Companhia das Letras, 3a. ed. p.34.
A associação foi instantânea. Essa "chave da memória" deve estar naquela casa das chaves em que a Emília, ao invés de desligar a chave da guerra, desliga a chave do tamanho e a humanidade se vê reduzida a dimensões liliputianas. Na história de Monteiro Lobato, Guliver ficou sendo o porco Rabicó. A chave da memória também deve ser a madeleine de Proust, ou o ratatouille servido ao crítico de gastronomia Anton Ego.

A chave da memória deve ser do tipo que tem senha. É preciso lembrar os números na seqüência certa. E devem ser várias chaves, uma vai abrindo a outra. E a gente vai lembrando das coisas à medida que essas chaves vão sendo usadas. E vamos esquecendo à medida que as vamos perdendo. E é tão esquisito achar uma chave que não se sabe de onde é. Na rua, no fundo de uma gaveta, numa caixa de coisas avulsas.

Uma vez, herdei a mesa de trabalho do meu avô paterno. Uma mesa enorme, de madeira escura. Quando me mudei, tive que me desfazer da mesa, mas guardei a chave. Por um bom tempo. Agora a chave foi perdida também. Mas ficou comigo por tempo suficiente para eu ainda poder vê-lo trabalhando em sua mesa, com penas de metal, caneta tinteiro, mata-borrão, numa época em que as canetas Bic já eram banais havia muito tempo. Ele mantinha criteriosamente suas contas em dia,  em caderninhos, livros-caixa. Uma caligrafia perfeita. Deixava a gente experimentar aquilo tudo, sujar os dedos de tinta. Ganhei também a caneta tinteiro dele. Minha tia, irmã mais nova do meu pai, a deu para mim há alguns anos. Meu pai. Eu bem que queria achar a chave da memória dele. Vou "fazer de conta" e pedir um pouco de pó de pirlimpimpim para a Emília, para dar um pulo na casa das chaves. E a chave da memória acaba sendo a ficção mesmo. Faz de conta que...



 

Sidarta, o jejum e a terceira margem do rio

Sidarta encontra-se com o comerciante, que lhe pergunta o que sabe fazer. Sidarta responde que sabe "pensar, esperar e jejuar".

"- E que valor têm esses conhecimentos? O jejum, por exemplo. Para que serve o jejum?
- Para muita coisa, meu caro senhor. Para quem não tiver nada o que comer, o jejum será a coisa mais inteligente que se possa fazer. Se, por exemplo, Sidarta não houvesse aprendido a suportar o jejum, estaria obrigado a aceitar hoje mesmo um serviço qualquer, seja na tua casa, seja em outro lugar, já que a fome o forçaria a fazê-lo. Assim, porém, Sidarta pode aguardar os acontecimentos com toda calma. Não sabe o que é impaciência. Para ele não existem situações embaraçosas. Sidarta pode agüentar por muito tempo o assédio da fome e ainda rir-se dela. É para isso, meu caro senhor, que serve o jejum."
 Sidarta, Hermann Hesse, tradução de Herbert Caro, ed. Record.

Reli Sidarta na recente viagem familiar a Minas Gerais, onde não jejuei, com toda a certeza. Não sei jejuar, tampouco pensar ou esperar como Sidarta. Sei, só de saber, não de ser mesmo, no entanto, que liberdade não é poder ter aquilo que se quer, mas simplesmente saber não querer. Não precisar, não ambicionar e, no limite, não ser. Não sei se é algo que eu queira aprender. Também desconfio que é o tipo de coisa que não se encontra na literatura. Ou se encontra? Ou se desencontra?

Ao final do livro, Sidarta toma o lugar do barqueiro, ajuda as pessoas a atravessar um rio. Ele, no entanto, já completou a travessia , na verdade, atravessou para a terceira margem do rio. O rio.

***

PS.: A conclusão de O conde de Monte Cristo:
"- Querido - disse Valentine -, o conde não acaba de nos dizer que a sabedoria humana cabe inteira em duas palavras?
"Esperar e ter esperança.""

O conde de Monte Cristo, Alexandre Dumas,
trad. André Telles e Rodrigo Lacerda, ed.Zahar

E assim, três textos literários tão díspares acabam se encontrando num post de blog porque um leitor encontrou neles um significado comum. É, literatura também é encontro, além do desencontro.