quinta-feira, janeiro 10, 2008

O tempo parado de João Gilberto Noll

Do outro lado da rua, há um sebo. Beta de Aquários. Em sua vitrine, havia outro dia um lote de livros de João Gilberto Noll. Seis livros exatamente, todos da Editora Francis. Os preços variando de R$ 10 a R$ 15. Gastei R$ 65. Eram novos. Alguém teve prejuízo, outros lucraram.
Entrar numa livraria e roubar o tempo, comprar livros, é roubar dinheiro da família. Ler é roubar ainda mais tempo, ao mesmo tempo que se desfruta do objeto do crime. O tempo da leitura passou a ser criminoso e marginal.

Comecei a ler por Mínimos, múltiplos, comuns. Um livro estranho. Diz a apresentação, de Wagner Carelli:
João Gilberto Noll passou três anos e quatro meses na aplicada disciplina de escrever toda semana duas narrativas completas, e de porte incomum: cada relato estava confinado a um máximo de 130 palavras.


A primeira delas, que abre a seção chamada Gênese e que começa pelo Nada:
Nadas

Tecido Penumbroso
Como posso sofrer porque as coisas pararam? Elas andavam tão estouvadas! Por que não deixá-las dormir agora um pouco? Tudo se aquietou, é noite, o mundo vive pra dentro, cegando-se ao sol do sonho. Preciso um pouco desse conteúdo inóspito, ermo com um quase-nada. Não, não é morte, é uma espécie de lacuna essencial, sem a aparência eterna do mármore ou, por outro lado, sem as inscrições carcomidas. Pode-se respirar também na contravida. Depois então, a gente volta para o velho ritmo; aí já não nos reconheceremos ao espelho explícito, tamanha a qualidade desse tecido penumbroso que provamos.
Eu queria achar essa porta para um não-mundo, um não-tempo. Não se trata de uma busca do Nirvana, de fusão com o cosmo, de iluminação. Sequer uma passagem para um mundo mágico no fundo de um armário. Nada disso, ainda que tudo isso. Apenas poder ausentar-se. O mais próximo que já cheguei foi através da leitura e da escrita. Só que, ao retornar, as horas tinham se passado, o relógio não parou. E me vi de volta às horas, as horas, sem realmente ter saído delas. Acho que só mesmo a morte, e nem a morte é garantia de escapar ao tempo.
É melhor ler um livro, as próximas 130 palavras de Noll, talvez. De madrugada, quem sabe, quando as coisas adormecerem. Mas aí, estarei roubando o tempo do sono, um roubo impossível, pois a vítima sempre se derruba o criminoso na ressaca do dia seguinte.

Um comentário:

Sue Pareico disse...

Bonito texto. O tempo passa quando estamos entretidos num livro, em um outro mundo. E uma coisa é certa: Sempre "voltamos" diferente.