quarta-feira, outubro 05, 2005

O coração das trevas, Joseph Conrad (final)

No livro Noite do oráculo, de Paul Auster, um dos personagens fala das vezes em que viu o mundo acabar. Invariavelmente, momentos de destruição do homem por si mesmo. O holocausto. Essa é a base do filme Apocalypse now, que Coppola ampliou a partir de O coração das trevas.
Não existe UM fim do mundo. O mundo acaba a cada vez que o homem se destrói, seja individualmente, seja nos grandes holocaustos.
Coppola atualiza para o Vietnam o que os Europeus fizeram durante toda a sua história colonial. A história que Conrad conta poderia se passar em qualquer momento dos 500 séculos das Américas. Até os dias de hoje. Se fosse feita uma adaptação para o horror vivido dentro do Superdome de Nova Orleans, o espírito se manteria.
Assim, a África de Conrad é apenas um pano de fundo para um dos fins do mundo. O coração das trevas é um mergulho nas trevas do coração humano, uma grande metáfora. Conrad se aproveita da cor da pele africana para aprofundar o jogo de luz e escuridão. A escuridão é impenetrável, assim, o homem branco não consegue penetrar na alma dos negros, apenas destruí-los. Assim também, a floresta, a natureza, em seu estado primitivo, original, é impenetrável para o homem branco. Aquele que mergulha nesse mundo, é consumido, como Kurtz. Marlow escapa por pouco. No filme de Coppola, mostra Willard (Marlow) incorporando Kurt no final, mas saindo do inferno e indo para algum lugar desconhecido. Fica claro que Willard não será o mesmo depois daquela missão.
Marlow também é transformado pelo que vive e pelo que NÃO vê. O inimigo é oculto, a escuridão não se revela. Repare que, no filme, não se vê um soldado inimigo. Ouve-se e vê-se as explosões e tiros. O inimigo não se revela. Assim é a África de Conrad, culminando na névoa que os cobre pouco antes de chegar ao acampamento de Kurtz. Tudo é metáfora. O cenário não tem valor em si, mas apenas pela atmosfera que cria para o mergulho de Marlow e seu encontro com Kurtz. Ou consigo mesmo. O verdadeiro inimigo é interno, a resistência à loucura diante do absurdo.
Um dos temas recorrentes do livro que me atraíram é o conceito de inimigo. Conrad fala da brutalidade dos europeus contra os habitantes. O narrador, Marlow, se mostra atônito diante dos que são chamados inimigos. Como considerar como tal uma população que não tem armas para se defender dos tiros brancos. Em um trecho do rio, ele vê um navio francês disparando canhonadas a esmo sobre a floresta, onde, supostamente, havia um acampamento inimigo. Como chamar inimigos quem não pode se defender?
Os "inimigos", em outras circunstâncias, são chamados de trabalhadores ou ainda, de traidores. Os traidores são aqueles condenados por Kurtz, por se voltarem contra a "ordem" instituída por ele. A observação é de Marlow: "(...) aquelas cabeças eram cabeças de rebeldes. Ficou muito chocado porque ri. Rebeldes! Qual seria a próxima definição que iria escutar? Haviam sido chamados de inimigos, criminosos, trabalhadores... e esses eram rebeldes." Tratavam-se de cabeças espetadas em estacas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Todo mundo tem o seu primeiro encontro com um livro especial, aquele se transforma, inicialmente num objeto de desejo e depois de lido, num objeto de lembranças. Encontrei o meu objeto de desejo numa vitrine de confeitaria. Isto mesmo,uma confeitaria de antigamente. Ele se encontrava visitado por pequenas moscas que beliscavam o açúcar dos pães doces e merengues expostos. Esta confeitaria ficava numa esquina - era uma parada de bonde.
Todos os domingos, voltando da visita semanal a casa da vó, esperava o bonde e namorava o livro.
No Natal ele chegou - embrulhado num papel celofane azul.
O Soldadinho de Chumbo - meu romance de formação. Andersen me iniciou, precocemente, nas belezas e tristezas do amor.