O pescador
Júlio não gosta de futebol. Seu pai gosta, muito. Seu pai gostaria que ele gostasse de futebol, gostaria muito. No aniversário de dez anos, o pai deu ao filho um par de chuteiras e uma bola tamanho oficial. Ambas da marca Nike, na cor azul metálico. Júlio gosta do pai, gosta muito, de verdade. Assim, gostou muito do presente também, mesmo não gostando. O pai ficou feliz que o filho tenha gostado tanto assim dos presentes. (Mesmo sabendo que o menino não tinha gostado tanto assim).
Júlio mora na rua Buarque de Macedo, no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro. A rua começa na Praia do Flamengo e termina na Rua do Catete. Tem sempre muitos carros estacionados dos dois lados, só dá passagem para um carro de cada vez. O prédio em que Júlio mora, não tem play. "Vai filho, chama seus amigos e vai jogar bola lá embaixo". Júlio achou muito estranho o pai dizer isso, pois se não pode sair na rua sozinho, pois se tem muito mendigo e gente ruim que faz mal para as crianças. Mas, Júlio gosta muito do pai e achou por bem obedecer. Ligou para o amigo da escola, que morava em outro prédio e perguntou se ele queria jogar bola na calçada, que ele tinha ganhado uma bola nova e o pai tinha dito para ir jogar lá embaixo e ele tinha ganhado também as chuteiras. "Que maneiro!", disse o amigo, que realmente gostava de futebol, mas sabia que Júlio não sabia jogar e que também não podiam descer para a rua para brincar. "Minha mãe disse que a rua não é lugar para brincar", disse o amigo. Então Júlio calçou as chuteiras, pegou a bola e desceu.
O porteiro elogiou as chuteiras e a bola brilhantes, e apertou o botão para destrancar o portão eletrônico. Júlio ficou em pé na calçada estreita, em frente à grade do prédio. A calçada era esburacada e com sujeira de cachorro. Fez a bola quicar no chão, chutou de leve, passando o pé por cima. Ficou chutando de um lado para outro da calçada, em frente ao prédio. Quando vinha alguém, segurava a bola com a mão. Um cachorro fez xixi na árvore em frente ao prédio, a bola escapou dos pés de Júlio e passou em cima do xixi. Ele pegou a bola e parou na frente do portão, o porteiro abriu e Júlio lavou a bola na torneira da garagem. Ficou chutando a bola dentro da garagem do prédio, mas o zelador disse que não podia jogar bola ali.
Ele foi para o elevador e voltou para casa. O pai disse, “Já?! Vai brincar, cara! Aproveita!”. Júlio não queria voltar para a rua sozinho, não queria jogar bola. Mas, pegou a bola de novo e desceu. Saiu pela calçada e foi andando em direção ao Aterro. Atravessou a rua passou pela passarela sob as pistas dos carros. Foi chutando a bola devagar, até uma quadra de basquete. Ficou olhando os caras jogando basquete. Não gostava de basquete, menos ainda do que de futebol, a bola era muito grande e pesada. Foi até aquele lago retangular, sempre seco, tinham falado que era um lago para miniatura de barcos a motor ou a vela. Mas o lago estava sempre seco, por causa dos mosquitos da dengue. Bem que se estivesse com água ele ia gostar de brincar com barquinhos de controle remoto, mas era caro, o pai nunca ia comprar para ele. Ele entrou no lago seco e começou a chutar a bola de um lado para outro. Tinham pintado um gol de cada lado do lago e Júlio marcou muitos gols, dos dois lados.
Enquanto chutava a bola nova, não reparou num grupo de meninos de rua que pularam a cerca do lago e ficaram olhando ele jogar. "Aí, vamu jogá?" Júlio sacudiu os ombros, os meninos entraram no lago seco por causa da dengue e fizeram dois times. Os meninos estavam descalços, mas sabiam jogar futebol. Eles gostavam muito de futebol. Acharam a bola linda. Júlio não conseguia mais tocar na bola, ele não sabia jogar futebol, acabou ficando de fora. Sentou-se na beira do lago, ficou olhando o jogo e vendo os bondinhos de Pão de Açúcar se cruzando entre os dois morros, lá longe, na Urca. Uma vez ele foi pescar na Urca com o pai, ele gostou de pescar com o pai. Ele gostaria de ganhar uma vara de pescar, daquelas com molinete, e ir pescar com o pai. "Me empresta a chuteira?" Um menino maior do que ele estava na sua frente. Júlio ficou com medo. Tirou a chuteira e emprestou. As meias também. Obviamente, as chuteiras ficaram apertadas no moleque, mas ele as enfiou assim mesmo. Os meninos ficaram jogando futebol, a bola estava suja e arranhada, as chuteiras no pé do outro também. Mas estavam felizes, uma alegria fácil de um jogo que os tirava momentaneamente das ruas e os colocava dentro de um campo, com regras conhecidas e que aqueles meninos desregrados sabiam obedecer. Respeitavam as faltas, as laterais, os tiros de metas. Xingavam-se, batiam-se, mas jogavam bola e marcavam gols. Júlio queria ir embora, mas não tinha coragem de interromper o jogo para pegar a bola e as chuteiras de volta. Até que a bola veio em sua direção e ele a pegou. "Joga a bola aí, mano!" "Tenho que ir embora" "E daí, joga a bola aí!" "Me dá minha chuteira, tenho que ir embora" "Dá a bola aí, moleque! Quer morrer?!” De algum lugar, surgiu um revólver na mão de um menino. Júlio se assustou, pulou a cerca, caiu do outro lado e saiu correndo. Foi correndo até em casa. Entrou ofegante. “Que foi menino?! Cadê a bola?!"
"Pai, vamos pescar?”
Foram.
Rio , 15 de agosto de 2006